Diário de campo
Rio Guaporé (MT/RO)
O Rio Guaporé nasce na Chapada dos Parecis (MT), a 630 m de altitude e desemboca no rio Mamoré perto de Surpresa (RO). Na sua extensão de aproximadamente 1.400 km, sendo que 1.150 km são navegáveis a partir de Vila Bela da Santíssima Trindade. Em todo seu percurso no estado de Rondônia, e uma pequena parte de Mato Grosso, forma a fronteira do Brasil com a Bolívia. A navegação por esse rio foi realizada na segunda quinzena de junho de 2007, com palestras para a comunidade nas seguintes cidades ribeirinhas:
Pontes e Lacerda (MT) 18/06
Vila Bela (MT) 19/06
Pimenteiras do Oeste (RO) 21/06
Costa Marques (RO) 26/06 (cancelado devido à pane do motor do barco)
Também foi realizada uma palestra em Vilhena (RO) no dia 27/06.
Acompanhe aqui nosso Diário de Campo:
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A expedição pelo Guaporé começou com o desafio de alcançar a nascente desse belo rio na Chapada dos Parecis. A odisséia começou em Cuiabá, onde deixáramos o jipe e os barcos durante o intervalo entre a expedição ao rio Verde, também em Mato Grosso, e o Guaporé. Seguimos diretamente até Pontes e Lacerda (430 km, passando por Cáceres) para deixar o barco no reboque em um lugar seguro e poder seguir sem preocupações pelas estradas de terra.
Apesar de aumentar bastante a quilometragem com esse desvio, foi a melhor solução. Sem acesso direto de Pontes e Lacerda, voltamos pela BR-174 e pegamos a estrada para Jauru, uma pequena Petrópolis mato-grossense onde passamos a noite. A igreja, que lembra um chalé suíço, domina a cidade e foi palco do covarde assassinato do Padre Nazareno Lanciotti em 2001 (o motivo de sempre: ele pisava no pé de gente grande: e a surpresa – ninguém está preso.)
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Sabíamos que o dia seria longo. No pequeno hotel, onde haveria café da manhã às 6h, sem sinal de vida. O vigia-cozinheiro, um cara muito engraçado, ex-garimpeiro, correu para preparar tudo enquanto nosso José Luis fez o café. Primeira parada: a padaria para comprar sanduíche para o almoço. Onde estávamos indo, no alto da Chapada dos Parecis, não havia nem cidade, nem vila, muito menos um Bob’s.
Ao sair de Jauru em pleno sol, víamos a camada de neblina chegando de lá de baixo. A estrada que buscávamos foi de terra, boa, passando por paisagens bucólicas – pequenas fazendas, muito gado. Seriam uns 35 km até a UHE Guaporé, nosso primeiro acesso ao rio. O lago é pequeno – apenas 4 km de extensão, e a parede do vertente também é pequena. A água usada para as turbinas passa por outro lugar, um canal em paralelo até despencar 190 m por dentro da montanha!
Ficamos curiosos e seguimos a seta para a UHE – 5 km. Descemos uma estrada de terra bem ruim e lá em baixo, de portas abertas, estava o pequeno prédio de controle. Os dois funcionários de plantão nos deram as boas vindas e se esforçaram a mostrar e explicar tudo. Impressionante como uma pequena barragem como essa pode gerar 124 MW de energia fazendo tão pouco impacto ambiental. O tempo todo, fiquei lembrando o absurdo total da represa de Tijuco Alto planejado pela CBA no rio Ribeira, onde pretendem construir um lago de 52 km de extensão, inundar uma vasta área onde mora muita gente e há Mata Atlântica, construindo um muro vertiginoso de 142 metros de altura, fechando o vale – para gerar a mesma coisa – 128 MW – tão mais eficientes no Guaporé. Francamente, há lugares apropriados e outros não.
Voltamos à estrada e logo estávamos acima da Chapada. Plana, plana. No raio de 360 graus, só estendia uma baixa mata secundária de cerrado. Não passava nenhum outro veículo. Paramos na fazenda Alto Guaporé (de soja) para pedir orientações e mandaram seguir até a Fazenda São Paulo. Pelas fotos aéreas que tínhamos tirado, já sabíamos onde ficava a nascente. Já eram as 14h. Não conseguimos achar a sede da fazenda. Pulamos a cerca e andamos 2 km por uma trilha na mata até encontrar uma área pantanosa vazando água pra baixo. O começo do épico Guaporé. Catamos nossa amostra num riacho e voltamos a pé até o carro.
Agora, como fazer para voltar a Pontes e Lacerda? Uma opção seria fazer a mesma volta enorme por Jauru. Outra era arriscar indo no sentido oposto, acreditar na possibilidade de achar alguma estrada que conectava com a rodovia Cuiabá-Porto Velho. Desde que saímos da UHE e com a exceção da fazenda Alto Guaporé onde nos entramos, não vimos outro ser humano. Não havia quem perguntar. Mas não importava, o lugar é de uma beleza tão extraordinária, que andávamos felizes, nos sentindo literalmente no topo do mundo. Há várias reservas indígenas na Chapada, da etnia parecis. Dizem que eles tocam fogo no mato – havia incêndios imensos no horizonte – mas como eles não têm gado, não vejo porque precisaria de pasto verde.
Curtimos um belo pôr-do-sol lá no alto, sozinhos no mundo, e chegamos de volta a Pontes e Lacerda às 9 da noite. Um dia maravilhoso.
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É raro dormirmos duas noites na mesma cidade. Até fica estranho se levantar da cama e não ter que fechar a mala. O programa do dia é navegar no Guaporé para cima e para baixo da cidade. Vamos logo ao local debaixo da ponte da estrada para Vila Bela onde há uma praia bem inclinada e dura. Segundo as pessoas locais, não seria possível navegar muito para cima, devido às pedras e corredeiras, então nos concentramos no rio abaixo.
Primeiro, fizemos uma pequena volta com uma equipe da TV Record local, e depois seguimos – toda a equipe – para descer o rio. O leito é extremamente sinuoso e as margens ainda bem protegidas pelas matas, com a exceção de alguns locais onde operam areais. Nosso objetivo era pelo menos alcançar a fenda onde o rio corta a Serra da Borda. Sabíamos que, pouco depois, o rio entra num extenso buritizal e a navegação fica impossível. O rio simplesmente some. Ele se espalha no pântano e se divide em minúsculos riachos que às vezes terminam em nada. Pelo que vi do ar, seria muito fácil uma pessoa se perder lá dentro para sempre!
Durante a navegação nesse trecho, ficamos surpreendidos pela enorme quantidade de aves nas matas ao lado do rio. Parecia mais rica em pássaros do que o Pantanal.
À noite, fizemos nosso evento na praça da cidade.
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19/06/07 Vila Bela da Santíssima Trindade
Acordamos cedo, cheios de boas intenções para partir logo para Vila Bela, mas vários assuntos nos atrasaram. Enfim, estávamos novamente na estrada, uma bela estrada que cruza uma planície cortada pela Serra da Borda. Já ao oeste desta serra, aparece outra mais bonita ainda, uma espécie de chapada que domina a paisagem – é o PN Ricardo Franco, pano de fundo da cidade de Vila Bela.
Em Vila Bela, encontramos com Mario Friedlander, que vai ser o quinto membro dessa expedição. Chegando na cidade às 10h, colocamos logo a lancha no rio para navegar rio acima para coletar uma amostra. O Guaporé não é navegável entre Pontes e Lacerda e Vila Bela, porque o rio, após cortar a Serra da Borda, se espalha por um pântano de buritis. O rio se subdivide em dezenas de pequenos riachos que serpenteiam pelos buritis que caem e fecham o caminho. É um lugar sensacional, único, um refúgio para animais, aves e peixes. Deveria ser preservado a tudo custo, por ser um ambiente raro e, vamos admitir, de pouca utilidade para o ser humano. Vamos deixar o lugar em paz?
À tarde, repetimos o percurso com uma equipe da TV Centro América, da Globo, mostrando a beleza excepcional do lugar. Também filmaram algo do evento à noite, quando projetamos as imagens na parede da pequena igreja ao lado das ruínas da igreja matriz (foto) que dominam esse lugar há mais de 200 anos. A praça lotou e ficamos emocionados com o carinho e interesse da população.
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A equipe da Globo queria fazer mais filmagens no rio, então como sabemos que isso vai nos atrasar na longa navegação que temos pela frente, começamos muito cedo. A idéia era sair com o repórter Renato e um câmera, percorrer uns 40 km até o Estirão Ritinha onde o carro poderia resgatá-los. Mas, como tivemos que encher o barco de gasolina suficiente para dois dias de viagem, até Pimenteiras do Oeste, descobrimos que com os quatro a bordo, o barco não conseguia andar direito.
Seguimos somente com o cameraman… e tivemos sorte de ver até ariranha. Encontramos com todos na casa do sábio Benevildes, um grande negro que vive ali, com seu pai, na única área do assentamento onde há árvores…e mudas para plantar mais.
Finalmente, continuamos nossa viagem. Mario se junta a Gerard e eu no barco. Temos mais 140 km pela frente. Infelizmente, então, José Luiz não pode navegar conosco, mas pelo menos ele fará companhia ao Tiago na longa viagem que enfrentam até Vilhena, para depois encontrar conosco de novo no dia seguinte em Pimenteiras.
O rio já está bem mais encorpado, e continua extremamente sinuoso. As matas são densas e largas, mas em duas ocasiões passamos por balsas privadas, operadas exclusivamente por latifundiários da margem esquerda do rio. Essa região que era terra virgem até pouco tempo atrás, está sendo totalmente devastada, sem dó. Isso contrasta bem com as terras bolivianas onde a área é protegida pelo PN Noel Kempf.
Faltando pouco para o pôr-do-sol, conseguimos achar certinha a Pousada Paço das Onças, que está em operação há menos de um ano, tocada por um jovem casal. Sorte nossa de encontrar um lugar confortável para dormir exatamente meio-caminho entre Vila Bela e Pimenteiras e um excelente jantar nos esperando, em quantidade suficiente para um batalhão. Daniela é 10 na cozinha!
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Tomamos um café bem reforçado, mais uma obra da competência da Daniela na cozinha, e já pela 7 da manhã, estavamos descendo o rio novamente.
O rio Verde já vem demarcando a fronteira entre a Bolívia e o Brasil desde em cima da chapada. Ao encontrar com o Guaporé, esse rio se torna a linha da fronteira. Na “boca del Verde” se encontra um posto do parque boliviano Noel Kempf, uma imensa área protegida. Do lado boliviano, às vezes há imensas falésias, belíssimas, e a Serrania de Huanchaca domina a paisagem. O lado brasileira é bem mais plano.
Nesse trecho desde a pousada até Pimenteiras, uns 180 km, cruzamos com poucos ribeirinhos, mas começaram a aparecer cada vez mais pescadores, especialmente pescadores esportivos. Há uma pequena comunidade, a Vila Neide, onde três pousadas recebem esses turistas-pescadores. Pessoalmente, não entendo como agüentam ficar tantas horas paradas na beira do rio sendo atacados pelos borrachudos e mosquitos! Temos a vantagem de viajar a 45 km/hora, livres deles, mas cada vez que paramos para conversar com alguém, o ataque é instantâneo!
Antes de parar em Pimenteiras do Oeste, fomos conhecer a sede do parque boliviano, onde, ao encostar o barco no porto, ficamos surpresos de ver a canoa do Brasil das Águas. Tiago e José Luíz tinham subido o rio também para conhecer o parque. Boa surpresa!
Chegamos já no pôr-do-sol em Pimenteiras – foi uma correria para tirar ambos os barcos, tomar banho e correr para a palestra no colégio às 20h. O ginásio estava lotado, ficamos emocionados com a recepção, o engajamento da comunidade e voluntários em prol do meio ambiente.
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A partir de Pimenteiras, começa a parte mais complicada da navegação no rio Guaporé. Até Costa Marques, não haverá acesso ao rio para Tiago, trazendo o carro de apóio. Devido ao peso que temos que carregar no barco – todos os tanques de gasolina cheios, mais equipamento de sobrevivencia, de camping, sacos de dormir, etc., – então o barco comporta somente 3 pessoas. Vamos Gerard, Mario e eu.
É o dia que temos que viajar o trecho maior: são mais de 250 km até Porto Rolim. Saimos de Pimenteiras na hora do nascer do sol, e acabamos chegando em Porto Rolim pouco antes do pôr-do-sol. Lá, sem ter como tirar o barco do rio, tivemos que tirar todo esse equipamento e levá-lo, com a ajuda do jerico (um carro movido a gerador, feito em casa) até a pousada da Miriam. Tivemos a sorte, porque lá pela 19h, já estávamos de banho tomado e esperando o jantar.
Tiago teve um dia bem mais pesado. Saindo cedo de Pimenteiras, ele passou por Vilhena para deixar José Luís no aeroporto (teve que voltar a Brasília), seguiu para Rolim de Moura encontrar com Waldir, uma pessoa que conhece muito bem a região e concordou em acompanhar o Tiago pela estrada de terra que chega o mais perto possível a Porto Rolim. Já era 9h da noite quando encostaram no porto e começaram a descer o rio Mequens, na escuridão, até Porto Rolim, trazendo a gasolina que precisávamos para poder continuar a viagem.
Enquanto isso, nós estávamos numa boa, jantando no hotel na companhia de um amigo piloto Euflávio, que viera da cidade de Pimenta Buena para encontrar conosco, trazendo mais 5 amigos! Foi uma festa!
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Como o trecho a ser navegado era o menor de todas, pouco mais do que 100 km, não tivemos que sair correndo muito cedo. Euflávio convidou Gerard e Tiago para fazer um sobrevôo da região e um outro buritizal, parecido ao que vimos perto de Vila Bela. Mario sumiu, tirando fotos maravilhosas. Eu fiz algumas entrevistas para saber como as coisas andavam nessa comunidade de aproximadamente 700 pessoas que vive sem nenhuma ligação rodoviária com o Brasil.
Antes de voltar a descer o Guaporé, subimos um pouco o rio Mequéns, acompanhando Tiago e Waldir, que trouxeram nossa gasolina ontem. Eles teriam que navegar uns 45 minutos subindo o Mequéns até onde deixaram o Landrover. O Mequéns é um rio muito especial, de águas claríssimas e com um potencial parecido aos rios de Bonito. O problema é a dificuldade de acesso. É muito longe!
Nos despedimos dos dois e voltamos ao Guaporé que, com cada dia que passa, nos deixa mais boquiabertos. Existe rio mais bonito em todo o Brasil? Du-vi-do! Por isso, um trajeto que deveria levar menos de 3 horas nos leva 5 horas. Tantas belezas para contemplar e fotografar.
Pedras Negras é uma comunidade muito pequena mesmo, de 70 pessoas. Já desde Brasília, consegui ligar para o orelhão e falar com Francisco, o administrador. Quando chegamos, ele também estava chegando de uma pescaria de alguns dias. A comunidade tem construída uma casa de hospedes, muito boa, porém ainda inacabada, sem banheiro. Mas havia bons beliches, e tínhamos nossos sacos de dormir. Maravilha.
Dona Aniseta, mãe do Francisco e da Francisca (professora), nos preparou um excelente jantar (javali como nunca comi). Dormimos como bebes.
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A comunidade ainda estava dormindo quando descemos de volta ao rio. Apenas Cleonir estava acordado! Veio ajudar carregar nossa tralha e trouxe pão e bolo para levar na nossa viagem. Puxa vida, como foram calorosos os habitantes dessa vila quilombola. Ficamos tristes que nossa estadia foi tão curta.
O rio estava novamente um espelho… acho que é uma característica do Guaporé. Qualquer hora do dia, a superfície parece vidro. De manhã cedo e no fim do dia, mais ainda. Bem agasalhados contra o frio do vento à velocidade no barco aberto, começamos uma perna de 130 km até o quilombo de Santo Antônio do Guaporé, onde haveria uma grande festa por ser o dia do São João. Pelo caminho, como sempre, paramos para conversar com ribeirinhos, nas fazendas ou nas vilas bolivianas. A cidade boliviana de Versalles foi uma preciosidade.
Quando chegamos em Santo Antônio, já era meio-dia e muitas pessoas tinham ido embora – afinal, a festa e as danças duraram a noite inteira. Mesmo assim, o clima de festa continuava e sr. Juracy, da ONG Ecovale, nos recebeu e ofereceu um delicioso almoço. Logo depois, nos levou à sede da Ecovale, meio hora rio abaixo, onde realizam um projeto de proteção de quelônios e aves que põem seus ninhos nas praias, como gaivotas e talha-mares. É um projeto impressionante, de trabalho intenso de julho a janeiro, período em que há praias no Guaporé.
Chegamos em Costa Marques bem no final do dia. Em frente ao porto meio bagunçado (lixo, sujeira), do outro lado do rio, encontra-se uma comunidade boliviana, toda de palafitas. Na verdade, é um comércio – os brasileiros atravessam o rio para fazer compras made-in-china aqui. Tiago nos aguardava na beira do rio. Estamos felizes de ter conseguido realizar essa etapa complicada com sucesso, mas também estamos cada vez mais cientes que estamos chegando ao fim do rio, e isso nos traz certa tristeza. Não há dúvida que o Guaporé é um rio muito, muito especial. Tanto pela qualidade de suas águas e suas matas bem preservadas, como pelas comunidades que vivem em suas margens.
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25/06/07 Fazenda La Isla, Bolívia
Saímos do hotel na escuridão.
Percorremos os 160 km que faltavam para alcançar a foz do Guaporé no rio Mamoré, ao lado da cidadezinha de Surpresa (o Guaporé deve ser o único rio do mundo que tem uma surpresa destas no final). Coletamos uma amostra também nas águas barrentas do Mamoré e fomos conhecer um pouco da comunidade. Antes de meio-dia, embarcamos de novo para encarar os 160 km de volta a Costa Marques.
Percorremos apenas 30 quando o motor da lancha pifou. Irremediavelmente. Sem dúvida, ele se dizia “Mas já percorri os sete rios, porque estamos voltando para trás?” e resolveu parar. Ficamos à deriva enquanto Gérard tentou vários malabarismos para consertá-lo, em vão. Remamos até uma fazenda na margem boliviana e começou uma longa novela atrás de um reboque… o que apenas deu certo no dia seguinte.
Com calma, vou completar todos os detalhes dessa novela!
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26/06/07 Príncipe da Beira
Dormimos todos – Gérard, Mario, Tiago e eu – na sala da sede da fazenda. Quer dizer, alguns dormiram. Eu não consegui: quando desligamos a luz, os peões ainda estavam desquartelando o bezerro, ou seja, chegaram à parte onde quebram os ossos com um ‘machete’. Os cachorros brigavam para receber as sobras. Abaixo das palafitas da casa, os porcos grunhiam. Um galo começou a cantar às 3 da manhã. E a pequena filhinha da Angélica chorou quase a noite inteira, no quarto ao lado da minha rede.
Mas adorei tudo isso. Não queria dormir mesmo. Lá fora, o rio iluminado pela luz forte da lua. Estávamos num canto perdido da terra, pouca habitada, recolhidos sob o teto de um casal boliviano que nos recebeu sem hesitação – quatro pessoas estranhas que pintaram no seu quintal.
Lá pelas 7 da manhã, vimos uma chata de carga subindo pela outra margem do rio. Donald, o fazendeiro, levou Gerard na voadeira para pedir socorro. O barco (boliviano) estava subindo até Costa Marques e o comandante concordou em rebocar nossa lancha e nos invitar a bordo.
Ficamos felizes da vida. Amarramos nosso barco atrás, com mais duas voadeirinhas, e subimos no barcão como estivéssemos embarcando num transatlântico. O comandante Dennis nos apresentou sua esposa, Yanet, as duas filhas Yoli e Dani, e filho mais jovem, Moises, com uns 15 anos. Viviam a bordo na maior harmonia e felicidade. As filhas também sabiam pilotar o barco, estavam sempre sorrindo.
Enquanto Gerard aproveitou da rádio do barco para fazer novos contatos com Ecovale, em Costa Marques, e tentar saber o que houve na véspera, Tiago, Mario e eu subimos no telhado do barcão e sentamos no sol, felicíssimos de viajar a 6 km/hora, curtindo tudo sem vento, sem pressa. Gerard recebeu a confirmação que um barco tinha saído realmente na véspera, tinha alcançado a aldeia indígena de Ricardo Franco às 19h sem nos encontrar e voltara na escuridão. Mas já estava a caminho novamente.
Não nos importávamos mais com isso. Estávamos curtindo cada momento desse último trecho de navegação no Guaporé. A certa altura, duas ou três horas mais tarde, o barco foi interceptado por três lanchas do exercito brasileiro, com metralhadoras a postas e tudo. O comandante da operação mandou os bolivianos pararem, mas, coitados, eles estavam já com problemas de ignição e não quiseram desligar. Foi um pouco absurdo, a final, a velocidade máxima era 6 km/h, eles não tinham exatamente como fugir! Gerard conseguiu mediar para que deixasse em marcha lenta. Foi feito uma busca no barco e na papelada: tudo em ordem. Graças a Deus, não quisemos encrencas para essa família tão generosa conosco.
Nisso, nos chamaram para almoçar! Que luxo. Piranhas fisgadas de manha, bife, arroz, feijão… tudo. Que mordomia. Estávamos terminando quando chegou o Pelado na voadeira da Ecovale. Que pena, teremos que ir embora… Amarramos nossa lancha atrás da voadeira, cheios de dúvidas se ela ia conseguir ser mais veloz do que o barco boliviano. Mas sim, e nos despedimos dos amigos, subindo o rio a 19 km/hora.
Pelado (Francisco) é um cara bem legal. Coitado, tinha saído de Costa Marques na véspera, às pressas, sem casaco, e passara muito frio navegando no rio à noite. Tudo em vão, sem nos achar.
Eram 5 horas da tarde quando encostamos em Príncipe da Beira. Deixamos nossa lancha na margem para que Pelado pudesse ir mais rápido para Marques. Mario e eu fomos correndo visitar o forte com o que restava da luz do dia. É um lugar privilegiado com o mais belo pôr-do-sol do Brasil! Mas beleza sempre tem um preço. Ao escurecer, o ataque dos mosquitos é tão feroz que leva ao desespero. Eles não se importam com repelente, mordem qualquer coisa para ter sangue!
Enfim, chegaram Gerard e Tiago com o reboque, resgatamos a lancha doente e voltamos a Costa Marques, 38 km de estrada de terra bem ruim. Infelizmente, tínhamos perdido a palestra, e agora, com outra em Vilhena no dia seguinte, não havia nem como passar a noite. Fomos ao hotel, tomamos banho, recuperamos as bagagens e enfrentamos mais três horas de estrada horrível para adiantar o caminho. Mario, tão impressionado e emocionado ao conhecer o forte, resolveu ficar mais um dia para ter tempo de fotografar cada detalhe.
Pernoitamos em São Francisco do Guaporé (infelizmente, já bem longe do Guaporé).
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27/06/07 Vilhena
A informação de que a viagem Costa Marques/Vilhena levaria 12 horas, sem paradas, nos assustara. Ainda bem que adiantamos 3 horas na véspera. À noite, o estrago é menos chocante. De dia, passamos por paisagens devastadas, onde sobravam esqueletos de árvores secas jogadas no solo, ou em pé abanando com galhos sem folhas. É inacreditável que, 30 anos atrás, esses mesmos lugares eram berços de vida, sempre verdes e úmidos, uma abundancia de biodiversidade. A floresta não conhece poeira.
E poeira é o que mais tem hoje em dia. O solo perde a fertilidade quando a floresta cai. Em seu lugar, constantemente pisoteado pelo gado, vira pó. Observe o pano de fundo da foto. Sobraram meia dúzia de palmeiras, e só.
Conseguimos chegar em Vilhena às 17 horas, a tempo de reabastecer o nitrogênio líquido das amostras para as análises de bacterioplâncton. Ufa. Foi sempre uma grande preocupação, porque desde que saímos de Cuiabá, não havia como repor o nitrogênio.
O maior problema que temos agora é o Landrover. Aliás, é um problema que vem piorando nos últimos dias, sem que pudéssemos consertá-lo. Um vazamento de óleo, com o motor andando. Agora, como temos que levar as amostras perecíveis até Brasília quanto antes, não tem como ficar esperando dias numa oficina. É tocar pra frente e ficar de olho no óleo!
À noite, demos uma palestra no auditório da Câmara Municipal, coordenada por Rita Correa que nos convidou há meses. Depois, fomos jantar com vários vilhenenses e pudemos, enfim, relaxar. Os compromissos chegaram ao fim. Agora, apenas temos que voltar inteirinhos para casa!
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A longa odisséia da volta. Tiago e eu deixamos o Gerard, que tinha compromissos, no aeroporto para pegar o vôo da Trip para Cuiabá. Tínhamos pela frente, então, 750 km de estrada para completar o mesmo trecho. Tudo bem, estrada agradável. Mas no decorrer do dia, eu já comecei sofrer de uma intoxicação alimentar, acredito que fosse o leite no café da manhã, e quando finalmente chegamos em Cuiabá, às 8h da noite, eu estava dobrada de dor. Foi uma noite de inferno, sem melhoras, e no dia seguinte, abandonei Tiago para completar mais de 1.000 km até Brasília sozinho. Mesmo assim, o caos aéreo me pegou e somente cheguei de volta em Brasília quase no final do dia. Ainda sofrendo muito. E assim seguiu durante mais 2 dias.
(Mais tarde, recebi um recado do amigo Waldir, de Rolim de Moura onde almoçamos juntos numa churrascaria no dia anterior. Mais 15 pessoas ficaram intoxicadas, algumas até acabando no hospital, como o próprio Waldir.)
Tiago veio sofrendo também, porém no caso dele, foi o indigesto Landrover, cada vez mais cansado e querendo atenção. Chegou suando e mancando, no final do dia de sábado.
Sete rios percorridos. Temos que fazer os cálculos… mas rodamos e navegamos muitos quilômetros e parece que todos estamos precisando de um descanso e recarga de baterias!
Valeu a pena? Cem por cento! Foram sete rios muito diferentes, com problemas e soluções diferentes, mas em geral com pessoas entusiasmadas e interessadas em proteger seus mananciais. Qualquer força que os incentiva a continuar nessa batalha vale a pena.