Diário de campo
Rio Ribeira (PR/SP)
A expedição pelo Rio Ribeira do Iguape foi realizada entre 5-11 de novembro de 2006, saindo de Curitiba rumo a Cerro Azul (PR). Subimos de carro até o encontro dos rios Ribeirinha e Açungui, formadores do Ribeira, e descemos acompanhando o rio de carro. Somente foi possível colocar a lancha no rio em Registro, devido ao nível excepcionalmente baixo da água na ocasião. Subimos até o encontro com o Rio Juquiá, e depois descemos até a foz no Oceano Atlântico, em Barra do Ribeira (SP). As apresentações ao público foram feitas nas seguintes cidades ribeirinhas: Adrianópolis/Ribeira, Iporanga, Eldorado, Registro e Iguape.
Vale ressaltar que o barco utilizado nas navegações usa o motor de popa Evinrude E-Tech, o mais ecológico disponível no mercado que, além de usar até 75% menos óleo que os motores 2 tempos, emite um volume de monóxido de carbono até 50% menor que qualquer motor 4 tempos.
Acompanhe aqui nosso Diário de Campo:
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Parece que estamos viajando no Land Rover há meses. Saímos de Brasília na 5a feira no final do dia, dormimos em Araguari (GO). Na sexta, passamos 13 horas na estrada, nos enrolamos bastante na escuridão e na chuva para chegar ao maravilhoso Parque Estadual Intervales (SP)que fomos conhecer às 10h da noite só porque, ao chegar em Capão Bonito, vimos a placa e ficamos curiosos. No dia seguinte, descemos até Ribeira onde deixamos o barco guardadinho na Pousada do Zeca, e subimos até Curitiba para encontrar com Rejane e Tiago Iatesta, nosso novo expedicionário. No domingo, saímos cedo da cidade rumo a Cerro Azul, de onde pegamos uma estrada de chão e muito buraco até a chamada nascente do Ribeira, ou seja, onde o rio é formado pela confluência do Ribeirinha com o Açungui. Em Cerro Azul, disseram ser uns 25 km…mas foram 37. Ida e volta e desviando, uns 75. Próximo destino, voltar a Ribeira e Adrianópolis, cidades-irmãs separadas por uma ponte.
Seguimos o conselho de um simpático senhor: “é fácil,” ele disse. “Porque subir a serra de novo? Peguem a estrada que vai direto para Adrianópolis, beirando o rio. É perto… sei lá, uns 30 km” Parecia perfeito. E no início, assim foi, seguindo o belo rio por uma ampla estrada de terra, escoltada pela majestosa Mata Atlântica. Pequenas casas, bem simples, a maioria de madeira, campos verdes onde as vacas pastavam na maior serenidade. Cenas bucólicas onde reinava a maior paz.
Andamos horas e nunca parecíamos chegar mais perto. Quando pedíamos informações, aquela frase de sempre “Podem seguir, não tem erro…”
Erro tinha sim. Muitos. O rio tinha sumido, estávamos subindo e descendo trilhas por vales carecas, onde já tinham derrubada recentemente as plantações de pinos e a mata nativa era coisa do passado: curvas sem fim. No GPS, Adrianópolis estava sempre a 20 km, independentemente do rumo que seguíamos procurando uma muito falada “estrada nova” para Rocha. Imaginávamos um caminho magnífico, terra preparada. Era uma descida de montanha quase vertical, parecia ter sido feita na véspera, nunca passara nenhum carro. No fundo do vale, enfim, achamos Rocha: um punhado de casas paupérrimas, muitas abandonadas. Só a igreja ainda estava caprichada. Uma ponte, um campo de futebol, e muita floresta nas encostas íngremes que surgiram do fundo do vale. Mas aí, já estávamos atrasados, estava escurecendo e ainda faltavam 30 km!
Mais tarde, me arrependi de ter passado batido por Rocha. Um lugar que vai sumir do mapa, junto com a magnífica floresta que veste aqueles vales. O campo de futebol, a igrejinha, as casas, a bela floresta vai ficar 99 metros abaixo da água. Depois de Rocha, voltamos a encontrar o Ribeira numa parte do vale muito estreita mas, puxa vida, que lugar espetacular. Se fosse a Costa Rica, turistas do mundo inteiro viriam aqui. E nós vamos simplesmente alagar essa preciosidade como se não tivesse valor! Porque nesse local, a Cia. Brasileira de Alumínio pretende levantar uma imensa barragem. Decisões tomadas em lugares distantes, em outras realidades, assinam uma sentença de morte sobre todo um ecossistema harmonioso onde vivem milhares de pessoas. É um dilema triste. Os que não perdem suas terras acham ótima a perspectiva de um emprego por alguns aninhos. Para os que têm que fugir das águas, a perspectiva é outra.
Enfim, chegamos em Adrianópolis e Ribeira. Na praça, o pessoal gentilmente nos esperava. Às pressas, montamos o datashow, projetando as imagens na parede da igreja, quando começar a chuviscar. Mudamos todos para dentro da igreja onde terminamos a palestra. A platéia foi carinhosa, o prefeito Jonas Batista bem prestativo e, exaustos, suspiramos aliviados.
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Antes de pegar a estrada para Apiaí, subindo a serra, descemos pela margem direita do rio por uma estrada de terra até a Vila Mota e a abandonada mineradora de Plumbum para coletar uma amostra. A Plumbum era uma importante mina de chumbo, ouro e prata que faliu há 10 anos. Até agora, as cidades rio abaixo suspeitam que casos de câncer comuns na população são em decorrência dos dejetos de metais pesados daquela época, e os resíduos que perduram até hoje. Mas agora reina a maior paz naquele pedacinho do vale – pequenas casas de agriculturas, pequenas vilas onde a vida parece ter parada naquela época quando bandidos eram personagens em filmes de faroeste. (Veja Link sobre a contaminação de chumbo no vale do Ribeira.)
A cada momento que percorremos dentro do Vale do Ribeira, olhamos para cima, para as montanhas intermináveis com suas mantas de florestas, cortadas por milhares de riachos de águas claras, e pesa no nosso coração a possibilidade de tudo isso ir pra água abaixo.
Enfim, pegamos a estrada até Apiaí, 30 km de subida por paisagens esverdeadas, e de lá descemos novamente, mais 40 km rumo a Iporanga. Essa estrada, então, é sensacional, uma trilha de terra batida passando pela Mata Atlântica virgem, que surge como uma catedral a cada lado. De vez em quando, abre um visual de tirar o fôlego, quando a gente desce do carro e respira aquele ar que é mato puro. Em todas as direções, árvores magníficas, carregadas de bromélias e do canto de pássaros escondidos.
Paramos em Bairro da Serra, 18 km antes de Iporanga, onde marcamos encontro com a Natalie, uma jornalista inglesa que veio acompanhar parte da expedição conosco. Ela trabalha para a revista Geographical, e também vai escrever sobre o turismo sustentável na região. Quando chegamos à Pousada Tatu, ela ainda estava conhecendo algumas cavernas do PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira. Ela chegou logo e fomos com Bero conhecer a caverna Ouro Grosso. Ao entrar na mata densa, ouvimos um estrondo com se tivesse alguma cachoeira poderosa nas proximidades. Mas não: era um forte vento, como um vendaval, sacudindo as árvores. O céu ficou preto, alguns galhos já começaram a cair. Achamos melhor dar meia volta: ao sair da floresta, já estava chovendo. Voltamos correndo à pousada.
À noite, descemos até Iporanga, onde demos nossa apresentação na escola municipal para uma platéia – a maioria de adolescentes – que duvidávamos poder calar. Mas ouviram tudo em quase-silêncio até participaram com as perguntas. “As barragens vão secar nosso rio?” uma aluna quis saber.
Pergunta difícil de responder! Rio acima, o “rio” vai sumir, ser transformado num lago. Rio abaixo, também. E entre as múltiplas barragens, haverá minúsculas trechinhos que nem deveriam levar mais o nome “rio”. Até sair da região montanhosa e chegar na planície, onde não há como fazer mais alguma barragem. Aí, o rio vai voltar “ao normal” – dependendo da bondade e da necessidade das barragens. Em épocas de seca, as barragens vão reter certa quantidade para poder continuar rodando as turbinas. Na cheia, se a barragens estiverem cheias, não vão ajudar evitar enchentes.
Só fico pensando na miserável situação do Rio São Francisco após vencer as barragens de Sobradinho, Pedro Afonso, Xingó, Itaperica etc, etc. A quantidade de água que sobra para alcançar o oceano é tão pífia que em vez do rio entrar no mar, é o mar que entra no rio. Foi isso que ouvimos de ribeirinhos no Baixo Velho Chico. Em São Paulo, vai ser diferente?
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Programa diferente pela manhã – um exemplo do turismo sustentável que traz renda para o Vale do Ribeira. Fomos conhecer uma das cavernas do PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira), a Alambari de Baixo. Para isso, uma caminhada dentro da exuberante Mata Atlântica, berço de muitos riachos que alimentam o Ribeira. Impressionante como a mata densa consegue abafar os ruídos gerados pelo homem (barulho de motor etc.) mas amplifica os piados dos pássaros. Na caverna, é possível experimentar a sensação de silêncio total total, tão raro na superfície. Silêncio total mesmo respeitado pelo rio que desliza, sem fazer qualquer barulho, por dentro da caverna.
Iporanga é uma charmosa cidade colonial. Aparentemente, o homem branco chegou até aqui (atrás do ouro, claro) menos de 60 anos após a chegada do Cabral nas praias bahianas. Em 1756, também atrás de ouro, chegou uma expedição subindo navegando pelo rio, e nós nem conseguimos descer! Apesar do Ribeira já ser um rio de porte em Iporanga, ainda era impossível colocar nosso barco na água.
É um caminho cheio de pedras e bancos de seixos.
Então continuamos pela estrada, agora de asfalto e que acompanha a margem do rio, passando por pequenas comunidades e especialmente remanescentes de quilombos. Ao começar entrar nas regiões mais planas, aparecem os bananais, principal produto agrícola do município de Eldorado. Paramos de vez em quando para falar com ribeirinhos ou nas comunidades. Perguntamos o que eles acham da perspectiva de todo o que conhecem sumir em baixo das águas. Um senhor, agente de saúde, com quem falei me respondeu assim: “As barragens são boas para algumas pessoas e ruins para outras. Não vão mudar minha vida. Mas se são ruins para algumas pessoas, tirando tudo o que eles têm, então sou contra.”
Em Eldorado, fomos muito bem recebidos pela prefeitura e a população. Montamos o telão na praça central da cidade. Com a mudança do horário do verão, não podemos mais projetar imagens às 19h, temos que fazer hora até escurecer e a praça foi enchendo aos poucos. Adoramos o alcance da espontaneidade da praça pública, longe da formalidade de um auditório. As pessoas que são tímidas demais para fazer perguntas no microfone, ficam à vontade para se aproximar depois.
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Opa! Chegamos a Registro em pleno sol, com céu azul…raridade na nossa viagem até agora. Mas, infelizmente, tivemos que desistir da intenção de fazer o trecho Eldorado-Registro no barco. Simplesmente não há água suficiente no rio! É inacreditável. Procuramos vários lugares para descer até a água com o barco no reboque, mas devido ao nível baixo do rio, as rampas terminam num barranco de um metro. Tivemos que continuar até Sete Barras (aliás, é uma estrada que passa por hectares e mais hectares de bananas, cultivadas até a beira do rio), pensando colocar o barco no rio ali. Lá, o sr. Zeca Ferreira, morador da cidade há 40 anos, nos disse que nunca em toda sua vida tinha visto o rio tão baixo. E mais: está 1 metro e meio abaixo da marca mais baixo registrada nesses anos todos.
Porque será??? Alguns alegam falta de chuvas devido aos desmatamentos nos morros rio acima. Outros perguntam como será, então, se as represas prendem ainda mais a água: o que vai sobrar para descer o rio? Não sabemos responder, mas ficamos com impressão que está na hora de rever todos os estudos e cálculos das represas que começaram a ser feitas 20 anos atrás, quando o rio estava bem mais cheio.
Tivemos que completar todo o trecho até Registro de carro. A decepção foi grande, mas foi uma mensagem bem gráfica que o rio nos deu.
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Enfim, conseguimos colocar o barco na água na rampa da marina de Registro! Num cenário que lembrava uma pintura japonesa – uma densa neblina deixando apenas aparecer os vultos das árvores na outra margem e a água do rio um espelho -, subimos rio acima até a confluência com o Rio Juquiá. A bordo estávamos Gérard, Natalie e eu, e nesse pequeno trecho também levamos o Alex, um jovem pescador que nos orientou pelo caminho para evitar dar alguma pancada nas pedras com a hélice. Alex estava assustado com o nível baixo da água. Além disso, teve duas queixas importantes: as toneladas de agrotóxicos jogadas nas bananeiras que vêm até a margem do rio e que ele culpa pela diminuição dos peixes, e as dragas de areia que mexem com o fundo do rio, aumentando a turbidez.
Voltando a Registro, deixamos Alex novamente na marina e seguimos os três rumo ao mar. O GPS, em linha reta, marcava uma distância de 38 km até Iguape, mas sabíamos que a distância real seria mais do que o dobro. Na vasta planície, o rio se contorna em dezenas de meandros bem fechados em sua busca para o caminho de menos resistência. A maior parte do trajeto, passávamos por fazendas de gado ou de banana, e alguns arrozais, e a falta de mata ciliar era gritante. Só nos últimos quilômetros antes de Iguape é que começou a aparecer um pouco de Mata Atlântica. E aí, que bela região. Apesar de estarmos desfrutando do primeiro dia ensolarado, o vento a bordo do barco era gelado: havia um anti-ciclone no alto mar que não deixava a temperatura subir. “Nunca imaginei sentir tanto frio no Brasil,” Natalie brincava, encolhidinha.
Em Iguape, entramos um pouco no Valo Grande, um canal construído pelos fazendeiros no século 19 para encurtar o caminho até o mar e que resultou em alguns danos ambientais, inclusive enchentes, mas depois seguimos o roteiro tradicional do Ribeira até sua foz em Barra do Ribeira. As ondas, também em função do anti-ciclone, estava bastante altas e contraditórios: permanecemos então nas águas do rio. Tiago veio nos buscar com o reboque e logo antes de colocar o barco em cima, percebemos que uma das barras de ferro estava rachada. Assim, voltamos com o reboque vazio até Iguapé, e Gérard deu a volta novamente até Iguape, atrás da serra.
E Iguape, que cidade linda! Amei! A praça cheia de flores dominada pela imensa igreja com duas torres; as casinhas pintadas cada uma de uma cor diferente; a limpeza e cuidado com tudo. Parabéns, Iguape!
A última palestra da viagem aconteceu na beira-mar com uma grande platéia entusiasmada. Estávamos, naquele momento, a uns 450 km do encontro dos rios Ribeirinha e Açungui que formam o Ribeira. Quem vê a mansa amplitude do rio perto do mar não pensa no esforço feito pela água, vinda dos pequenos córregos nas montanhas distantes para chegar ali, tão convenientemente. Mas vale a pena pensar nisso. Porque se o rio está baixando, secando, algo sério está acontecendo rio acima. E olhe lá, nem começaram a construir as represas ainda.
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Fim de expedição. Natalie volta amanhã para Inglaterra. Antes de ir embora, ela tem de conhecer Cananéia! Resolvemos ir no Land Rover pela Ilha Comprida, onde o único caminho é pela praia. Na Inglaterra, não tem isso de dirigir na praia! Gérard e eu já fizemos essa viagem há alguns anos. É um espetáculo, dirigindo naquela areia durona (pela maior parte), com o visual das ondas batendo a um lado, a restinga do outro, e a montanhosa Ilha do Cardoso surgindo à frente.
Mas, devido ao mesmo anti-ciclone no alto mar que nos fez sentir tanto frio ontem, não foi possível passar pela praia. O vento não estava deixando a maré descer o suficiente para passarmos. Tivemos que desistir e dar uma volta de 80 km para chegar a Cananéia pelo asfalto. Como Iguape, essa cidade parece parada no tempo. O centro histórico, com suas casas coloridas, reformadas, e o vaivém dos barcos pesqueiros no azulão do mar, cercado por mangues. Almoçamos contemplando tudo isso e relutando contra o relógio para começar o caminho de volta. À noite, teríamos que estar em Campinas. Depois do almoço, ficamos sentados na pracinha, absorvendo a tranqüilidade do local e adiando ao máximo a volta àquele caos de um grande centro urbano.
Difícil de ir embora do Vale do Ribeira. Vale que corta montanhas e planícies, passando por pequenas cidades e comunidades históricas que ainda não perderam seu charme… um vale tão perto de dois grandes capitais hiper-industrializados, mas que consegue ser quase esquecido. Ele, coitado, não é valorizado pelo que tem de mais belo, de mais diferente, de mais saudável, único e especial. Em vez de ser transformado num ‘vale do Loire’ brasileiro, ganhou o carimbo fatal de “propício para alagamento”.