Diário de Campo
A expedição pelo Rio Araguaia foi dividida em duas etapas. A primeira, realizada durante a segunda quinzena de maio de 2006, começou na nascente principal do rio, na fronteira tríplice dos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e seguiu até a cidade de Luís Alves, em Goiás. Na primeira expedição, foram realizadas apresentações sobre o Araguaia e a água em geral nas seguintes cidades ribeirinhas: Alto Araguaia (MT), Barra do Garças (MT), Aruanã (GO), Cocalinho (MT) e Bandeirantes (GO).
A segunda etapa começou nos meados de junho com uma apresentação em São Miguel do Araguaia. No dia seguinte, a equipe seguiu até Luís Alves e retomou o caminho do rio rumo à foz na confluência com o Rio Tocantins, em outra fronteira tríplice – Tocantins, Pará e Maranhão. Outras apresentações, a maioria em praça pública, foram realizadas em São Félix do Araguaia (MT), Luciara (MT), Caseara (TO), Conceição do Araguaia (PA), Pau d’Arco (TO), São Geraldo do Araguaia (PA) e Araguatins (TO).
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Vale ressaltar que o barco utilizado nas navegações usa o motor de popa Evinrude E-Tech, o mais ecológico disponível no mercado que, além de usar até 75% menos óleo que os motores 2 tempos, emite um volume de monóxido de carbono até 50% menor que qualquer motor 4 tempos.
Acompanhe aqui nosso Diário de Campo:
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14/05/2006 – Brasília (DF)- Mineiros (GO)
Por mais que se prepara e planeja uma expedição, o dia antes da partida é sempre uma correria doida. Desta vez, apesar de ter passado por essas partidas em viagem inúmeras vezes, não foi diferente. Muitas vezes, são as coisas mais simples que esquecemos e ficamos incrédulos quando logo sentimos sua falta: lanterna, binóculo, havaiana.
O sábado foi frenético, com a casa e o jardim encobertos de sacolas, ferramentas, peças de barco e de carro, mochilas e caixas de isopor. Aos poucos, fomos embutindo os bagulhos dentro do Land Rover e, onde possível, também dentro do barco no reboque. No domingo, já estavamos prontos – Gérard, Rejane, Itanor e eu, no friozinho matinal, quando enfim o sol mostrou sua cara e resolveu nos seguir rumo ao oeste. O caminho seria de Brasília, passando por Goiana e Rio Verde, para almocar em Jataí às 14h com o Luziano, amigo desde 2004 quando, como delegado da polícia ambiental de Goiás, nos levou a conhecer a nascente do Araguaia.
Mas aí passamos por uma experiência muito interessante. Pegamos a saída errada de Goiânia, e pensanda estar a caminho de Rio Verde, fomos descendo na direção de São Paulo. Conclusão: é tao mais fácil voar, sem tantas distrações, nem tanto bate-papo! Estamos acostumados a viajar somente em dois, usando fones de ouvido, e cada um sabendo o que tem que fazer. De repente, estávamos em quatro, e cada um pensando que o outro “está fazendo” ou “está vendo”. Só descobrimos o erro quase duas horas mais tarde e tivemos que ligar para Luziano confessando nosso deslize. Visto que estávamos com o barco no reboque, nossa velocidade estava bastante limitada, mas conseguimos chegar em Jataí as 16h, ainda a tempo de saudar a mãe do Luziano (afinal, era Dias das Mães) e devorar um excelente churrasco na casa dela.
Luziano chamou o encantador Sr.Meco para conversar conosco. Uma sumidade em tudo o que diz respeito ao cerrado, Sr Meco nos encantou com seu bom humor e sabedoria sobre as plantas e árvores nativos mas também pelas histórias que contou sobre viagens que fez há 40 anos pelas margens do Araguaia. A vontade era ficar até altas horas ouvindo esses relatos, mas ainda tínhamos 200 km pela frente para chegar à fazenda Jacuba, do Sr Milton Fries, no município de Mineiros. A essa altura, estávamos em comboio, com mais 2 carros – do Luziano e Zé Roberto (da polícia ambiental) e do Almiro e Weimar do jornal O Popular de Goiânia. Enfim, lá pelas 21h, chegamos todos na fazenda na Serra do Caiapó, perto do Parque Nacional das Emas. Fazia muito frio, mas Sr Milton esperava pacientemente, apesar de nosso atraso, com um excelente jantar. Exaustos, fomos dormir, com café da manha marcado para as 6h!
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15/05/2006 – Nascente do Araguaia (Mineiros, GO) – Santa Rita do Araguaia (GO)
O friozinho de inverno acima da Serra deixou todos tremendo dentro dos agasalhos. Nada como o generoso café da manhã, preparado pela sorridente cozinheira da fazenda, para pôr todos no ritmo certo: seguir até a nascente no comboio de carros que agora contava também com Sr. Milton Fries e com Taís e Eudes, da TV Rio Claro, da Globo.
Primeira parada, a imensa voçoroca Chitalinho que virou ponto turístico há alguns anos. Pudemos constatar que, graças aos esforços e medidas tomadas pelo Sr. Milton, a voçoroca não avança mais. Foi totalmente contida pela construção de um murundum (espécie de alto ‘muro’ de terra batida que evita que as águas da chuva despencam para dentro da voçoroca, levando cada vez mais terra e provocando deslizamentos das encostas). No fundo, onde antes tinha apenas terra vermelha e parecia cenário de lua, hoje a vegetação já está voltando e dentro de poucos anos, a voçoroca vai simplesmente ‘sumir de vista'(porém continuará existindo) dentro a cobertura vegetal.
Nos últimos 10 anos, Sr Milton foi comprando terras degradadas em volta a sua fazenda. Terras que, com o desmatamento radical e mau uso do solo, sem curvas de nível, provocam terríveis erosões e voçorocas. Com a chuva, a terra vermelha era levada até o rio, tornando barrentas as águas outrora cristalinas. Com o trabalho de contenção, replantio e proteção das nascentes, o Alto Araguaia voltou a ter águas azuis na época da seca e, mesmo nas chuvas, não corre mais vermelho.
Fazia quase 2 anos desde nossa primeira visita à nascente. Ficamos contentes de ver como a vegetação tinha aumentado em tamanho e volume, deixando ela cada vez mais escondida. Continua um milagre, aquela água cristalina brotando do nada, de pequeno poço com fundo arenoso que parece estar fervendo e que solta, de vez em quando, pequenas bolinhas de ar como se fosse, realmente, um ser vivo. Mas essa nascente, considerada a mais longe da foz, é apenas uma de milhares de outras nascentes que contribuem para a grandeza do Araguaia. Todas elas são importantes, todas elas merecem cuidados especiais. A natureza é tão generosa: não precisa de grandes esforços para recuperar uma nascente. É apenas deixar a vegetação nativa se regenerar (evitando o acesso de gado, por exemplo) e em 3 ou 4 anos, a água será mais abundante e mais limpa.
No final do dia, a caravana seguiu até Santa Rita do Araguaia, onde estávamos todos convidados na charmosa fazenda Santa Rita, do Sr. Carlos Salgueiro, dono de uma pequena pista de pouso de grama que tínhamos reparado do ar durante nosso levantamento aéreo do rio. A fazenda tem 110 anos e muitas histórias para contar, incluindo visita do JK em sua campanha à presidência.
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16/05/2006 Alto Araguaia (MT) / Sta Rita do Araguaia (GO)
De manhã, atravessamos a ponte centenária no Araguaia, construída pelo avô do Carlos, e colocamos o pequeno barco da expedição e mais 2 barcos no rio para subir (contra forte correnteza) os meandros do alto Araguaia. O trecho do rio entre as nascentes e as primeiras cidades (Santa Rita do Araguaia e Alto Araguaia, uma em cada lado da ponte da rodovia) é uma paisagem das mais belas. As águas azuladas do rio correm entre várzeas e terras mais secas, com uma vegetação e fauna abundantes. Com o aumento da conscientização sobre a importância da mata ciliar, ao longo do rio a maioria dos proprietários está deixando a mata crescer e proibindo a caça. Com isso, nossa subida do rio foi acompanhada pelos berros de araras, tucanos e papagaios que voltaram a encontrar um refúgio nas margens.
Feita a coleta de uma amostra de água para análise, voltamos para a cidade. À noite, seria realizada a apresentação do projeto na Praça da Bandeira em Alto Araguaia. Dentro do carro, estamos levando um projetor e um telão desmontável precisamente para sermos independentes e, em cidades menores, não depender de recursos locais para poder projetar as imagens do rio.
Além das apresentações, temos um pequeno questionário. Rejane entrevista várias pessoas na comunidade, perguntando o que acham do seu rio e a importância que ele tem na vida delas. As respostas são fascinantes. Até agora, na opinião da maioria dos entrevistados, o principal fator responsável pela deterioração na qualidade da água é o desmatamento nas margens e nas cabeceiras. Felizmente, isso deixou de acontecer rio acima dessas duas cidades e o resultado está na melhoria na cor das águas. Resta saber se, rio abaixo, as pessoas vão ainda culpar ações nas cabeceiras, ou se vão assumir que a responsabilidade da preservação do rio e a qualidade da água depende de todos que vivem ao longo dele e dos grandes rios que são seus afluentes.
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17/05/2006 – Alto Araguaia (MT) – Barra do Garças (MT)
Logo depois de Alto Araguaia, o rio Araguaia despenca pela charmosa Cachoeira do Araguaia e dali segue por outras cachoeiras (inclusive a linda Couto Magalhães) e caniôns até Baliza/Torixoréu. Nesse trecho, a navegação é extremamente complicada e perigosa. Por tanto, seguimos por estada (de terra), rebocando o barco, até Barra do Garças.
Partindo às 10h, pensamos chegar em Barra do Garças por volta das 15h. Engano! São mais de 300 km de estrada de chão, às vezes bastante ruim e exigindo cuidados especiais devido ao barco pulando no reboque. Em duas cidades – Araguainha e Ponte Branca -, descemos até o rio para coletar amostras de água. Chegando em Torixoréu, após um trecho especialmente poeirento e esburacado, Gérard parou para checar o reboque. Sexto sentido ou instinto feminino? Foi em boa hora porque a parte traseira do reboque tinha caído e estava sendo arrastado pelo chão literalmente por um fio… ou seja, o cabo que conecta as luzes da carreta ao carro. Má sorte foi isso acontecer logo na hora do rush. Durante todo o dia, raramente cruzamos com outro veículo mas na hora que tivemos que ficar parados na beira da estrada, passaram ene carros, picapes e caminhões, nos cobrindo cada vez com mais uma camada de poeira. Já era noite quando, enfim, avistamos as luzes de Barra do Garças.
Após um banho “curativo” no hotel Araguaia Park, com vista para o rio e as luzes de Aragarças (GO), corremos para o flutuante Botos onde, esfomeados, não demoramos muito para limpar os pratos… peixe ao coco e suco de caju. Delícia.
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18/05/2006 – Barra do Garças
Dia de correria, parecia que estávamos chegando após uma longa aventura. Consertos no carro, no reboque, tentativa de limpeza das toneladas de poeira vermelha que coletamos pelo caminho ontem. Entrevistas com a imprensa local e mais tarde, a apresentação no auditório da Univar. A participação da platéia foi ótima, com grande variedade de perguntas e manifestação de preocupações sobre a saúde do rio. A platéia reuniu gente dos três municípios que se encontram aqui: Barra do Garças (MT), Pontal (MT) e Aragarças (GO). Ficamos felizes de conhecer pessoas e associações que, por iniciativa própria, estão fazendo sua parte, como por exemplo um grupo que se juntou para tentar melhorar a situação crítica do Rio das Garças – “Recupere os cílios do Garças” – para ver justamente se pode algum dia voltar a ser um lugar agradável para garças.
Através das conversas com moradores ao longo do rio, está claro que muitos responsabilizam o desmatamento nas nascentes para a “situação” do rio. Porém, já vimos com nossos próprios olhos que as margens do alto Araguaia estão sendo recuperadas com sucesso. Agora, o mesmo trabalho precisa ser realizado nos rios que são afluentes do Araguaia. As cabeceiras destes rios também têm de ser protegidas, permitindo a volta da vegetação, dando força às águas. O Araguaia cresce devido à contribuição dos afluentes – ele somente pode ser saudável se os afluentes não o poluem e assoream.
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19/05/2006 – Barra do Garças – Baliza/Torixoréu – Barra do Garças
8 horas da manhã. Faz um friozinho na beira do rio. Estamos colocando os barcos na água para subir rio acima, até a ponte que cruza entre as cidades de Baliza (GO) e Torixoréu (MT)… e voltar!
Hoje somos 5 pessoas: sr Estelito, um sábio barqueiro que conhece muito bem o rio, o jornalista Genito que faz filmes de aventura, Gérard, Itanor e eu. A luz do sol ainda baixo ilumina nosso caminho, esquentando um lado do rio enquanto outro fica ainda na escuridão. Com a velocidade dos barcos, todos se agasalham. O Araguaia nesse trecho ainda é um rio de boas dimensões, onde é fácil se relacionar com ambas as margens ao mesmo tempo. As garças brancas levantam, reclamando, e saiam do nosso caminho barulento. Os iguanas se esquentam no solzinho nos galhos de árvores penduradas acima da água.
No caminho, encontramos algumas redes de pesca (são proibidas) e duas balsas de garimpo de diamantes se preparando para trabalhar a estação seca – em uma, somos recebidos com braços abertos, rola um cafezinho e muito papo sobre o rio. O cuidado que dizem ter, que não jogam lixo nem óleo, levam tudo de volta para a cidade. Espero que sim. Mas o garimpo mexe muito com o fundo do rio, tornando as águas turvas. Eles têm liçenca para operar. Fazer o quê, então? São apenas pais de família tentando ganhar uma graninha. Não importa quem somos, nossas ações têm repercussões na vida dos outros. Sr Estelito indica um local onde, anos atrás, havia uma ‘cidade’ de garimpo. Restam apenas as ruínas dentro da mata fechada.
Baliza é uma pequena cidade charmosa, com suas casas coloridas lembra a Bahia. No calor de meio-dia, reina mais um clima de sonolência. Entrevistamos alguns moradores e começamos o caminho de volta a Barra, sob sol intenso. Em todo momento, o rio nos encanta. Vai ser uma longa viagem até a foz, lá no norte do Tocantins, mas sinto que com cada quilômetro, vamos nos apaixonar cada vez mais por esse rio soberano. Viva o Araguaia.
De volta a Barra do Garças, Sr. Jorcelino, secretário municipal de Turismo, nos leva conhecer o balneário de Águas Quentes. Que beleza – as piscinas azuis dando suas voltas abaixo de uma mini-floresta. Um lugar incrível, extremamente bem caprichado, um tranqüilizante puro que mistura um banho quente com a paz do verde e da natureza. Melhor de tudo, pertence simplesmente à municipalidade e é administrado pela Prefeitura (veja foto no diário do dia 18/5). A água quente sai diretamente da fonte e é canalizada para dentro das piscinas, sem adição de cloro, e depois de fazer a volta pelo Rio da Preguiça (onde a galera ‘desce’ de bóia), a água retorna ao rio (a essa altura, menos quente). O único problema dos banhos quentes é que dá muito sono……..
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20/05/2006 – Barra do Garças (MT) – Aruanã (GO)
Fiquei um pouco aliviada ao perceber que uma grande frente fria no sudeste do Brasil estava tendo repercussões até aqui, com uma fina camada de nuvens. Íamos ficar no rio o dia inteiro: além do creme solar, a proteção das nuvens ajudaria bastante.
Desta vez, partimos com apenas um barco. A bordo, o barqueiro sr. Estelito de novo, Gérard e eu. Rejane e Itanor seguiram de carro por estrada de terra para nos encontrar em Aruanã.
Descida tranqüila. O rio já está enorme, às vezes correndo com pressa para seu destino tão distante, às vezes preguiçoso, quase parado. Corria a notícia de que um cardume estava subindo o rio. Havia, então, centenas de barcos de pescadores nas margens para tentarem a sorte. Como o nível das águas está baixando, na estação seca, as lagoas marginais – onde os peixes se reproduzem na cheia -, estão secando. Os cardumes sobem o rio em busca de comida. Os pescadores os aguardam, também em busca de comida. A distância que os peixes tentam percorrer é imensa: em cada curva do rio, alguém os espera. Talvez a camiseta de agente ambiental que sr. Estelito usava espantava os pescadores – todos disseram não ter fisgado nada!
De vez em quando, desligamos o motor e fomos boiando, descendo com a correnteza. Nas margens, centenas de tartarugas se secavam ao sol, alinhadas em troncos de árvores, pedras ou bancos de areia. Arredios, não nos deixavam aproximar para tirar fotos: logo ao perceber que não íamos passar direto, pulavam de volta dentro da água. Jacarés também faziam parte do cenário, e aves aquáticos. Mais perto de Aruanã, onde já havia maiores praias, avistamos pares de talha-mares e trinca reis preparando seus ninhos na areia. Eles têm que criar seus filhotes às pressas antes da invasão dos veranistas em julho.
Já pousáramos várias vezes em Aruanã mas agora foi a primeira vez que chegamos pelo rio. Ficamos assustados de ver como a força das águas já destruiram a parede de contenção da cidade.
A essa altura, era uma tarde ensolarada. Rejane e Itanor nos esperavam no pequeno porto. Tirando o barco da água e subindo a rampa, demos com uma bandeira dando as boas vindas à equipe Brasil das Águas na cidade! Ficamos emocionados com essa surpresa, e, por cima, um jantar oferecido mais tarde pela Dra Sonia França, Secretária do Meio Ambiente da Prefeitura, com presença do Prefeito. O rio Araguaia é o coração da cidade de Aruanã. Os moradores têm paixão pelo rio. Depois, veremos quais são suas preocupações.
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21/05/2006 – Aruanã (GO)
Pela manhã, a Dra Sonia nos levou à fazenda Arica, perto de Aruanã, para conhecer alguns das centenas de lagos formados ao longo das margens do Araguaia. Além de belos e tranqüilos, esses lagos formam um importante habitat onde os peixes procriam antes de voltar a ‘navegar’ pelo rio. Cercados por mata densa, também são um refúgio para as aves, especialmente no caso das lagoas que não têm “boca franca”, ou seja, não possuem uma abertura que permite o acesso fácil vindo do rio e, por conseqüência, são protegidas de todo tipo de pesca.
A tarde, Rejane entrevistou o cacique karajá Raul e outros moradores da cidade, e preparamos o evento da noite. Desta vez, foi fácil: em vez de montar nossa própria tela para a projeção, utilizamos a parede branca da igreja na Praça Couto Magalhães. Ficou perfeita. A grande vantagem de fazer as apresentações em praça pública é de ser facilmente observado pelos passantes, e assim poder chamar a atenção até dos mais tímidos. É gratificante ver o fascínio das pessoas em poder contemplar, no telão, imagens da nascente do seu rio. A participação no debate foi ótima, demonstrando bastante preocupação com o futuro do rio, especialmente com o Rio Vermelho, que desemboca no Araguaia logo na montante de cidade. Além do assoreamento rio acima, os moradores manifestaram seus receios com respeito a um grande empreendimento de irrigação para confinamento de gado dentro do município, o que estaria abaixando o nível daquele rio além de contaminando as águas.
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22/05/2006 – Aruanã (GO)- Cocalinho (MT)
Mais um dia espetacular, céu azul espelhado na água do rio. No trecho até Cocalinho (MT), teremos a companhía de Cleomar, natural de Aruanã e atualmente trabalhando junto com a Dra Sonia na Secretaria do Meio Ambiente da cidade. Cleomar é mais um apaixonado pelo rio e sua natureza abundante. Ele explica sobre a “corrida dos peixes”, ou seja, a corrida atrás dos peixes.
Nessa época do ano, os cardumes (pintados, matrinxãs etc.) começam a subir o rio após ter ficado nas lagoas marginais para reproduzir. Como o nível das águas já está abaixando e as lagoas ficando rasas ou secas, os peixes voltam ao leito do rio e nadam rio acima em busca de comida. Por lei, ninguém deve pescar a menos de 500 metros de um cardume, porém assim que haja notícia de um cardume (os pescadores colocam olheiros a postos na margem do rio para dar o sinal), a notícia espalha até Goiânia, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro e centenas de pescadores convergem no rio. Segundo uma senhora que entrevistei mais tarde em Cocalinho, “é uma tristeza de ver. Levam tudo. De um grande cardume de pintados que estava chegando há 2 dias, não sobrou nada…”
Com a erosão que a cada ano vai comendo as frágeis margens de areia, o rio está cada vez mais largo, ou seja, a água está mais espalhada e, por tanto, mais rasa. Passamos ao lado de um loteamento de bacanas, onde casas grandes tinham caídas no rio. Segundo Cleomar, apesar dos avisos sobre o risco do rio avançar com a retirada da vegetação, e tentativas de embargar a construção das casas, os donos tinham seguido em frente. Agora, restam os escombros enfeitando (melhor, enfeiando) o barranco e a água, e as margens ressecados, sem vegetação (veja foto acima).
Enquanto Gérard, Cleomar e eu descíamos o rio, Rejane e Itanor pegaram mais algumas estradas de terra no Land Rover, rebocando a carreta, e atravessaram o Araguaia de balsa para chegar a Cocalinho. Há uma ponte em construção, aparentemente para trazer de Mato Grosso o gado que será engordado no confinamento perto do Rio Vermelho.
Montamos o telão ao lado de um bar, na beira-rio, e inicialmente pensávamos que íamos falar para o rio, mas enfim chegou uma grande turma da escola, enchendo todo o espaço disponível. Houve um intercâmbio interessante, com perguntas que não esperávamos. Por exemplo, um aluno quis saber sobre o prejuízo que poderá causado ao rio pelo pilastras da ponte – se mudariam o curso do rio e a posição da praia – e onde iria ser jogada a terra escavada. Perguntas válidas. Não havia nenhum engenheiro civil na platéia para responder ao certo. Estou vendo que precisamos entender de uma grande variedade de assuntos – biologia, ictofauna, geologia, medicina, saneamento, engenharia civil, direito, agronomia – para encarar com firmeza as perguntas dos ribeirinhos, cada um com suas preocupações distintas.
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23/05/2006 – Cocalinho (MT) – Bandeirantes (GO)
O coitado do Land Rover e a carreta estão sofrendo bastante com tantos quilômetros de estradas de terra esburacadas. Desde Barra do Garças, o asfalto tem sido uma raridade. Sem o peso da lancha acima da carreta, ela levanta do chão ao passar pelos buracos, e todo dia dá um trabalho para apertar parafusos e consertar o que quebrou. A caminho de Aruanã, o estepe da carreta foi pro espaço. Sortudo quem achar esse pneu zero km!
Rejane e Itanor sempre chegam ao destino tão empoeirados quanto o carro. Gérard e eu, pelo contrário, chegamos lavados pelo vento de 50 km/h na lancha. Se eles quicam pelos buracos, nós também levamos algumas pauladas ao ‘bater’ nos bancos de areia submersos, mas é até gostoso de parar encalhados no meio do rio. Passamos cada vez mais sinais da “temporada de julho” (é quando vêm os turistas – ouvi dizer que são mais de um milhão) que está chegando. Nas maiores praias e ilhas, há gente montando barracas, banheiros, restaurantes e palcos em preparação para a invasão. O ser humano é um bicho estranho mesmo. Sai da cidade em busca da natureza, mas não consegue curtir uma das melhores coisas que ela oferece: a paz. Invés disso, traz para o silêncio do rio toda a cacofonia urbana.
Uma das perguntas do nosso questionário é sobre o que o entrevistado considera como o maior poluidor do rio. Oferecemos a opção de Esgoto, Agrotóxico, Lixo, Desmatamento e Turismo. Rio acima, a maioria culpava o desmatamento. Agora, a resposta mais freqüente é Turismo mesmo.
Bandeirantes é uma pequena cidade, bem calma, no município de Novo Crixás. Subindo o barranco alto do porto, chegamos logo à praça onde fica o supermercado do sr. José Ribamar (o manda-chuva da cidade), o nosso hotelzinho (da Eliana) e a pequena igreja que oferecia uma parede perfeita para nossa projeção à noite. (Ficamos gratos por esse apoio da igreja, aqui como em Aruanã.) Foi um sucesso. A população se espalhou pelos bancos da praça e ficaram curtindo as imagens.
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24/05/2006 – Bandeirantes (GO) – Luís Alves (GO)
Luís Alves seria o fim dessa primeira etapa pelo Rio Araguaia. Combinamos para encontrar com Rejane e Itanor às 13h na cidade, porque além de montar a palestra, teríamos que tirar o barco da água e encontrar um lugar seguro onde deixá-lo até a segunda etapa, em junho.
Luís Alves é, realmente, uma cidade que vive para o turismo da pesca. Levamos um susto ao chegar na beira-rio e ver uma grande quantidade de ônibus de luxo estacionados ao longo da rua. Na água, dezenas e dezenas de barcos (canoas) para os pescadores-amadores que vem aqui de todo o país. Já em pleno rio, bem antes de chegar na cidade, sentimos o cheiro do diesel.
Ouvimos falar que não ia sobrar quartos de hotel na cidade, tanta a procura pelos pescadores atrás dos cardumes. Não estou entendendo. Se todos sabem que não podem pescar nos cardumes, porque todos correm para o rio ao menor sinal deles? Hein? Dos entrevistados ao longo do rio, a maioria retumbante (incluindo pescadores) reclama que a pesca está piorando a cada ano. O motivo é claro e evidente. O Araguaia era famoso pela sua fartura e diversidade de peixes. Obviamente, se a cada ano há cada vez mais pescadores, mesmo respeitando os limites (o que a maioria não faz) de 5 kg mais um peixe, nenhuma espécie de peixe agüenta tamanha depredação.
Ao desembarcar, soubemos que Rejane e Itanor estavam em uma oficina em São Miguel do Araguaia. O disco da embriagem do carro queimou e, mesmo rebocando a carreta, tiveram que ser rebocados até a cidade. Tivemos que cancelar o evento previsto para aquela noite e esperar Itanor chegar de táxi rebocando a carreta para podermos tirar o barco da água. E agora? Voltamos todos para São Miguel onde acionei Álvaro Coutinho, webmaster do site www.rioaraguaia.com.br, que tinha entrado em contato conosco uma semana antes. Álvaro nos ajudou muito e foi um grande alívio poder contar com a orientação de um amigo local. Sem poder fazer mais nada até consertado o carro, o que ia demorar alguns dias por falta de peças, juntamos nossa tralha e pegamos o ônibus de volta a Goiânia e Brasília! Mas voltaremos!
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25/05/2006 – São Miguel do Araguaia (GO) – Brasília (DF)
Todas as expedições têm seus imprevistos, fazem parte do desafio. Ainda bem que nosso problema com o carro aconteceu ao chegar na última cidade do roteiro e que está prevista nosso retorno à região em junho quando continuaremos rio abaixo, rumo à foz.
Na viagem de volta a Brasília, deu para refletir muito em tudo o que vimos e ouvimos durante os 12 dias no alto e médio Araguaia. Deu para ver alguns dos problemas e perceber que há soluções. A tendência de todos é culpar quem mora rio acima. Mas todos nós temos impactos negativos no rio. Nada melhor do que tomar uma iniciativa, por pequena que seja, para começar uma mudança de hábitos que ajudará o rio a retomar seu fôlego. Os problemas do rio – desmatamento que provoca erosões que causam assoreamento, poluições de indústrias ou de esgoto, infiltrações no lençol freático devido às fossas negras comuns ao longo do rio ou aos lixões mal localizados, escassez de peixe devido à sobrepesca – podem ser resolvidos. Felizmente, há algumas pessoas e grupos excepcionais que batalham arduamente para a recuperação e preservação do rio. É muitas vezes um trabalho ingrato, mas continuam por acreditar no que fazem e por esperar que o rio possa continuar seguindo seu caminho, livre e solto, pelo coração do Brasil durante muitos séculos ainda.
Ficam gravadas na nossa memória tantas belas paisagens e, ao mesmo tempo, tantos apelos em prol do rio. Aprendemos muito. Em junho, vamos até o fim!
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12/06/2006 – Brasília – São Miguel do Araguaia
O sol estava nascendo quando chegamos ao aeroporto de Brasília no friozinho matinal de 11 graus. Nosso destino: São Miguel do Araguaia, onde deixáramos o Land Rover e os barcos há duas semanas. O Land Rover no Auto Socorro do Zezé, para trocar a embriagem, e a lancha hospedada no quintal do Alvaro Coutinho. Mas nessa fase da expedição pelo Araguaia, o avião Talha-mar também terá um papel fundamental de apoio ao barco ao longo do rio na altura da Ilha do Bananal, onde não há como chegar à margem direito com o carro nessa época do ano.
Estávamos em quatro: Gérard, Rejane, Julio Fiadi e eu, com um monte de bagagem. O amigo Norton Rapesta tinho se oferecido a ajudar no traslado até São Miguel em seu monomotor Corisco. Uma viagem de carro que levaria umas 6-7 horas, mas após 1.30 de vôo num céu azul sem nuvens à vista, já estávamos pousando em São Miguel. Foi um dia de correria entre recuperar o Land Rover poeirento, as bagagens deixadas com Alvaro, abastecimento de nitrogênio líquido para congelamento de amostras, entrevista de rádio e montagem do evento à noite no Centro Cultural Banco do Brasil. Para surpresa nossa, a sala encheu. Estavam o prefeito, a Secretária da Educação, a Secretária do Meio Ambiente, representantes da Ibama e professores da Universidade, além de a turma do curso de Gestão Ambiental da Universidade e pessoas engajadas na causa do Araguaia. Realmente, o rio tem um lugar muito especial no coração dos goianos, e o debate foi até quase 10h da noite. Ficamos especialmente felizes com a participação dos jovens – o futuro do rio depende muito do interesse deles em continuar a luta.
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13/06/2006 – São Miguel do Araguaia (GO) – Luís Alves (GO)
Pegamos de volta a lancha no quintal do Alvaro e, após alguns ajustes na carreta, saímos de São Miguel rumo a Luís Alves na estrada de terra. Estrada curta – apenas 50 km – mas extremamente esburacada que, segundo moradores de Luís Alves, já foi asfaltado várias vezes no papel, mas nunca de fato!
Diferente de quando estivemos na cidade há duas semanas, quando havia muitos ônibus estacionados no cais e uma corrida de pescadores pro rio atrás de cardumes de peixe, desta vez Luís Alves estava bastante calmo. Colocamos a lancha na água, transferimos as malas, e preparamos para uma saída bem cedo no dia seguinte… tudo isso a tempo de estar prontos para o primeiro jogo do Brasil na Copa. Fomos convidados a dormir na Fazenda Taxi Aéreo, do amigo Donizete de Goiânia. Que lugar bonito, sossegado. A luz da tarde é tão especial na beira do Araguaia que ficamos divididos entre assistir o jogo ou assistir a paisagem. A Copa venceu, e o Brasil também.
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14/06/2006 – Luís Alves (GO) – Algum lugar paradisíaco no Rio Araguaia (TO/MT)
Antes do nascer do sol, Gérard já estava de caminho de volta a São Miguel no Land Rover com a carreta vazia. Ele tinha que deixar o carro de novo na oficina do Zezé. Desta vez, não para algum conserto mas para “hospedagem” mesmo, a espera do Nataniel e Makoto que viriam de Brasília no final de semana. Eles vão pegar o carro e encontrar conosco em Caseara, Tocantins. O acesso rodoviário ao longo do trecho não existe, com a exceção de uma estrada que corta a ilha do Bananal e que somente é transitável em julho, com permissão da Funai. Portanto, tudo o que precisávamos para nosso trabalho e nos próximos eventos estaria dentro do barco ou no avião.
Além de deixar o carro na cidade, Gérard ia pegar o Sílvio na rodoviária. Sílvio estaria acompanhando o projeto durante uma semana para filmar o trabalho.
Naquela manhã, então, éramos três a seguir pelo rio de barco: Julio, Rejane e eu. Tínhamos pela frente um caminho longo, procurando uma passagem entre os bancos de areia que, a essa época do ano, aparecem cada vez mais. Raspamos o fundo arenoso várias vezes, tivemos que dar grandes voltas para achar o bom caminho. Tínhamos em mãos as coordenadas do nosso destino: uma praia onde encontraríamos com o barco Piratinga, da pousada Kuryala, que subiria o rio ao nosso encontro numa praia onde Gérard pudesse também pousar e todos ancorassem com segurança.
Finalmente, às 2.30 da tarde, avistamos o grande barco branco onde Gaspar nos esperava, com o avião estacionado na praia ao seu lado. Já no meio do rio, sentimos o cheiro de churrasco. Estávamos atrasados para o almoço mas valeu a pena. Do nosso ponto de partida, em linha reta seriam 90 km até essa praia, mas pelos meandros do rio, fizemos 165 km. A cada minuto, saboreamos paisagens espetaculares, o céu sempre azul refletido nas águas estreladas do rio. Já deixamos para trás o estado de Goiás e temos, na margem direita, estava a ilha do Bananal, no Tocantins. Em ambas as margens, a mata verde nos acompanha, as areias brancas surgem do rio, e os pássaros – socós, talha-mares, trinta-reis, biguás, ciganas, carcarás – registram nossa passagem aos gritos.
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15/6 Chegada em São Félix do Araguaia
Todos saímos da nossa praia-hotel quase ao mesmo tempo – a lanchinha, o barco grande e o avião – e pela frente teríamos uma corrida da lebre e da tartaruga. No barco Piratinga, claro, é o mais lento, porém o piloteiro Luis Cláudio, que tem mais experiência do rio do que nós, acerta o caminho. Na lancha, bem mais baixa, tivemos dificuldade para encontrar o bom caminho entre os bancos de areia. Várias vezes, erramos feio e em uma ocasião, tivemos que desembarcar todos para arrastar o barco pela areia até o canal mais profundo. Sempre, nessas ocasiões, há risco de pisar numa arraia adormecida, escondida na areia.
Na parada para o almoço, onde todo o grupo se reencontrou, aprendemos sempre mais sobre o rio e as mudanças que ocorreram nos últimos 20-30 anos. Gaspar é uma grande fonte de informações e nas conversas sobre a pesca, achamos que pudesse ser interessante o Brasil adotar o sistema de controle de pesca usado na Argentina. Ali, um pescador amador compra seu ‘passaporte’ de pesca onde estão claramente definidas as épocas em que cada tipo de peixe pode ser pescado, POR BACIA. Não está generalizado, como no Brasil, mas cada espécie de peixe em cada bacia está representada. No Brasil, devido à vasta extensão e quantidade dos rios, precisaríamos de anos de estudo para produzir um documento tão completo, mas nem por isso devemos desistir da idéia. Nunca é tarde para melhorar. Todos agradeceriam.
Já era o final do dia quando nós, na lanchinha, finalmente alcançamos o cais de São Félix para pegar Gérard, que pousara desta vez em terra firme, no aeroporto. Em seguida, voltamos rio acima até a pousada Kuryala, de Gaspar e Salete, construída nas árvores e sobre palafitas. Um belíssimo lugar.
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16/06/2006 – São Félix do Araguaia
A viagem pelo rio foi curta: 20 minutos desde a pousada Kuryala até a pousada Recanto do Sossego, na periferia de São Félix. Precisávamos pegar o equipamento para a apresentação que estava no avião, e levar tudo para o cais da cidade. Além disso, foi uma correria até a Lan House (como estamos ‘dependentes’ do contato cibernético!) Aproveitamos para atualizar o diário de bordo, sem saber quando teríamos essa oportunidade de novo…
(Eu estava certa… só hoje, dia 21, é que consigo novamente encontrar um cybercafé para dar notícias da expedição.)
No início da apresentação em São Félix, pensávamos que não ia comparecer ninguém, mas aos poucos as cadeiras foram ocupadas e as pessoas encherem o espaço da praça atrás. Às vezes, como as pessoas não reagem às fotos, pensamos que não estão muito interessadas, mas no final, vêm e falam conosco, agradecendo a oportunidade de ver fotos da nascente de seu rio, dizendo que ficaram emocionadas de ver aquela água pura brotando do solo. Nesses momentos, todo o esforço vale a pena.
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17/06/2006 – São Félix do Araguaia (MT) – Luciara (MT)
Parece chato todo dia falar do céu azul, mas é algo que realmente nos impressiona. Brincando, todo dia digo “Hoje vai chover”. É minha forma de vocalizar a certeza de que não chovera! A viagem até Luciara é curta, são apenas 69 km pelo rio. Num dia como esse, até é curta demais. Sempre, os membros da equipe que estão viajando pelo rio ficam com pena quando chegamos ao destino. O Araguaia é como um vício, a gente quer cada vez mais e mais!
Em Luciara, chegamos com tempo folgado para o almoço. Gérard e Rejane já chegaram no Talha-mar, já acharam 2 quartos na pousada da Solange, e como faltou espaço para Rejane, ela ficará hospedada na casa da Cláudia, secretária do Meio-Ambiente.
No final da tarde, vamos visitar a aldeia karajá São Domingos a 2 km de Luciara. O povo karajá são os donos originais dessas terras e agora, infelizmente, são reduzidos a pequenas comunidades vivendo à margem da sociedade branca, em situações de extrema pobreza. Estão perdidos entre dois mundos. Com toda razão, eles têm receio do mundo dos brancos mais são, compreensivelmente, atraídos por produtos que temos como biscoitos, doces, bebida, televisão. De certo modo, tentam manter alguns costumes ancestrais – fiquei contente de ver que, apesar da proximidade de Luciara, muitos dos adolescentes nesta aldeia aderiram ao costume de tatuar um pequeno circulo em cada bochecha. Optar para vestir a tatuagem da tribo com orgulho é um ótimo sinal.
O debate que seguiu a apresentação à noite, numa pequena praça na beira do rio, foi um dos mais animados, com participação ativa da população e depoimentos emocionados. Luciara sofre especialmente da predação provocada pelas chamadas ‘caravanas’, grupos de pescadores vindos de fora (Goiânia, Brasília, São Paulo) que se instalam em lagos da região e pescam, pescam, pescam…. não importa o tamanho dos peixes, vão enchendo os isopores e levam tudo embora. Uma queixa que ouvimos nessa cidade, como também em outras da região, é que essas pessoas que vem ‘em caravana’ (ou seja, vários carros juntos), nem trazem benefício para o comércio local, pois trazem toda sua comida e bebida de fora. O quadro é triste: essas pessoas mal gastam 5 reais na cidade, deixam pilhas de lixo espalhadas pelo local onde acampam e vão embora levando exagerada quantidade de peixe que, isso sim deveria ficar como sustento da população local.
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18/06/2006 – Luciara (MT) – Santa Teresinha (MT)
Até Santa Teresinha, teremos um longo trecho do rio pela frente, mais de 100 km e se quisermos chegar a tempo de assistir ao jogo Brasil/Austrália (13h), teremos que acertar o caminho e não encalhar nos bancos de areia. Antes das 8h, já estávamos (Julio, Sílvio e eu) cortando a superfície da água. De manhã, quando as águas estão completamente lisas espelhando o brilho do sol, é extremamente difícil de ver onde ficam os bancos de areia. O rio todo dá impressão de estar parado! Em nossa frente, aparecem os pontos de ilhas e é uma roleta russa decidir por que lado prosseguir. Não sabemos se vamos cair num braço do rio que não dar passagem. Mas tudo isso nos inspira com cada vez mais respeito para esse imenso ser vivo que é o Araguaia. Ele esconde muitos segredos e aos poucos vai se revelando, como se fosse desenrolando uma imensa fita na nossa frente.
Ficamos atentos para não passar direto em frente à Santa Teresinha sem vê-la. A cidade fica num pequeno braço de rio no sentido para trás para quem está descendo o rio. Como acertamos por pura sorte aquele pedaço do rio (poderíamos estar do outro lado de uma grande ilha próxima à cidade), logo percebemos a antena (sempre sinal de povoado) e entramos. Gérard e Rejane no Talha-mar tinha passado acima da nossa cabeça muito tempo antes, e estranhamos não vê-los no porto à nossa espera. Será que tiveram alguma encrenca? Era 12.30h: encostamos o barco embaixo de uma árvore e esperamos…
Faltando poucos minutos para o jogo começar, chegaram na caçamba de um Chevrolet “A Frete”. Tinham pousado muito tempo antes, porém não há táxis na cidade e tiveram que andar um bocado até achar alguém que pudesse ligar para o Frete. Tiramos tudo do barco e entramos no hotel quase na hora que estava começando o jogo. Foi uma correria porque, obviamente, ninguém quis ficar fazendo frete pra nós na hora do jogo!
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19/06/2006 – Santa Teresinha (MT) – Caseara (TO)
Se ontem fizemos um longo trecho no rio, hoje tem mais ainda! São mais de 100 km apenas até a fazenda Santa Fé, no Pará, onde fomos convidados a almoçar. Depois, seria mais uns 40 km até nosso destino, Caseara, no Tocantins. Acordamos cedo e corremos para colocar todo o equipamento de volta no barco (fomos aconselhados a tirar tudo por falta de segurança – mesmo numa pequena cidade dessas!). Antes das 8h, já estávamos voltando ao canal do rio e em menos de 10 minutos, estávamos bem encalhados num trecho muito raso do rio. Depois, todos diriam “mas fulano de tal falou pra vocês voltarem e descerem o rio atrás da ilha…”, só que nenhum de nós a bordo (Julio, Sílvio e eu) ouviu esse conselho. Ficamos uns 20 minutos insistindo, todos na água empurrando o barco pela areia, procurando um canalzinho que nos levaria ao grande rio. E conseguimos…
Depois disso, andamos super bem até, uns 30 km mais tarde, receber a visita do Talha-mar. Era quase 10 horas e um vento forte já estava tornando certos trechos do rio bem revoltos. O barco batia com força e ficava ainda mais difícil de ver onde ficavam os bancos de areia. Como Rejane não é muito fã de turbulência, Gérard pousou para que eu pudesse trocar de lugar com ela. Rejane seguiu no barco, eu subi no avião e fiquei encantada. De cima, os bancos de areia são tão óbvios que fica difícil imaginar como alguém na água não os vê. Ao mesmo tempo, fiquei aflita, vendo agora com tanta clareza as armadilhas que esperavam os colegas no barco e sabendo como é difícil decidir de que lado de uma determinada ilha seguir.
Mas deu certo, claro, e antes de meio-dia, o barco já estava chegando. Foi um privilégio ter grande almoço nos esperando, a convite de Marcos Mariani. Mas é bom não acostumarmos a essa idéia, que é uma exceção no nosso dia-a-dia. Como ainda tinha um bom pedaço de rio antes de chegarmos ao destino, Caseara, tivemos que comer e, muito sem graça, sair logo. Em Caseara, estaríamos reencontrando com o Land Rover, trazido de São Miguel por Natanael e Makoto, mas como não conseguimos contato com eles, pairava a dúvida se teriam conseguido chegar. Quando finalmente entramos no braço de rio que leva à cidade, demos com Gérard na pequena canoa vinda ao nosso encontro. Beleza, então, estaríamos sim todos reunidos na primeira cidade ao norte da Ilha do Bananal.
Ao aproximarmos do porto de Caseara, onde chega a balsa, vi que Julio reduzia cada vez mais a velocidade do barco. Caíra a ficha que era o último trecho do rio que faria conosco, tinha que voltar para São Paulo. Ele não queria chegar – Sílvio e eu também não, a luz da tarde era magnífica, o rio liso, a vegetação exuberante…
O porto fica a vários km da cidade. Ainda bem que carro e carreta nos esperavam. Foi uma correria para montar o telão para a apresentação, mas acertamos. O som da palestra foi maravilhoso, um sistema de ampliação à bicileta dirigida pelo sr. Izaquiel. A pracinha encheu espontaneamente e a participação demostrou, pela primeira vez, preocupação sobre a possibilidade de criar uma hidrovia no rio. Como essa proposta já fora derrubada pela população ribeirinha, pensávamos que o rio estava salvo dessa agressão. Mas será???
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20/06/2006 – Caseara (TO) – Araguacema (TO)
Muita confusão pela manhã! Gérard ia levar Julio e Sílvio de avião para Palmas, a cidade mais próxima onde há vôos regulares. Para poder embarcá-los e sua bagagem no Talha-mar, teria que tirar todo o equipamento das apresentações que o avião carregava desde Luís Alves. Mas também antes de ir embora, teria que colocar o barco na água…onde seguimos Natanael, Rejane e eu rumo a Araguacema. Makoto trazeria o carro até Araguacema.
Devido ao atraso com toda essa logística, somente partimos a 10h e logo descobrimos porque é importante sair o mais cedo possível. Batia um vento fortíssimo, levantando grandes ondas. Foi muita pancadaria, procuramos sempre ficar do lado direito para ficarmos abrigados do vento. Somente encalhamos uma vez e enfim chegamos a Araguacema, uma charmosa cidade localizada ao pé de um morro. Ao entrar no porto, vimos o carro estacionado no cais do porto, sem sinal do Makoto. Logo ele apareceu na frente do restaurante, abanando, supostamente feliz de nos ver, mas, na verdade, chateado porque seu almoço acabara de chegar. Largou o prato e veio tirar o barco da água. Ainda bem: assim nós também conseguimos almoçar!
Uma hora mais tarde, ouvimos o barulho de avião. Gérard estava chegando. Coitado, não haveria almoço para ele. Mas, em compensação, como não estava prevista um pernoite nessa cidade, também não haveria palestra: estávamos livres. No final da tarde, colocamos o barco de volta na água e fomos até a praia em frente à cidade para curtir o belo pôr-do-sol.
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21/6 Araguacema (TO) – Conceição do Araguaia (PA)
De tantas pauladas que levamos ontem no rio revolto, já sabíamos que era importante estar o mais cedo possível na água. Além do mais, sabíamos que pela frente teríamos que passar alguns travessões, mas toda a informação era tão contraditória, que não conseguimos saber com certeza se essas ‘cachoeiras’ eram altas e perigosas, ou apenas rápidos fáceis de passar. Pairava a dúvida se a ‘pior’ (ou será que era a ‘melhor’) cachoeira estaria antes ou depois da ponte que atravessa o rio antes de nosso destino, Conceição do Araguaia.
Felizmente, o pior era depois da ponte. Vínhamos bem (no barco, eramos novamente Natanael, Rejane e eu), ajudados pela sinalização para embarcações em certos trechos e especialmente nos travessões. Combináramos com Makoto no carro e Gerard no avião que, se não conseguíssemos passar rio abaixo, estaríamos aguardando embaixo da ponte. Ainda bem, porque realmente o travessão logo após a ponte era uma cachoeirinha mesmo, despencando ao menos 1 metro e meio. Amarelamos e voltamos à ponte esperar o ‘resgate’. Meia hora depois, chegou o Gérard no avião (ele tinha ido até Redenção abastecer o nitrogênio líquido em que congelamos amostras de bacterioplâncton) e ficou nos aconselhando onde levar o barco para poder tirar da água. Nisso, Makoto chegou. Operação triangular perfeito. Ele pegou Gérard no aeroporto e ambos vieram nos encontrar numa parte bem rasa e pedregosa do rio.
Como a temperatura é gostosa no rio, com sua própria brisa e a velocidade do barco. Na cidade de Conceição, nos derretemos. É estranho ver no noticiário sobre as baixas temperaturas no sul do país.
Demos nossa apresentação à noite na beira do rio e ficamos encorajados de ver o engajamento de um punhado de pessoas preocupado especialmente com córregos da cidade e com a poluição de um riacho por um grande curtume. Esse curtume fica perto da estrada que leva ao aeroporto e na nossa visita anterior, ficamos espantados pelo mau cheiro do lugar e uma pequena lagoa fedorenta onde a vegetação estava morrendo. A instalação desse curtume, em terreno público com isenção de impostos em troca gerar alguns empregos para a população, mostra como grandes empresas aproveitam das condições precárias em pequenas cidades do interior para se instalarem sem respeitar normas básicas como a não contaminação das águas. O pior é que esse riacho desemboca no Araguaia RIO ACIMA da cidade e por tanto joga as águas poluídas pelo curtume justamente na margem do rio usada pelos ribeirinhos por seu lazer.
Outro assunto de grande preocupação da platéia continua sendo a hidrovia: enquanto alguns poucos moradores estão a favor, na falsa impressão que o hidrovia geraria lucros e comércio para a cidade, a maioria enxerga o alto risco para o leito do rio e sua ecologia, de explodir os travessões para dar acesso às barcaças. O Araguaia já sofre com a erosão provocada ao longo do rio. Dragar um leito arenoso já seria uma grande perda de tempo, visto que o rio em seguida voltaria a encher o canal de areia de novo.
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22/06/2006 – Conceição do Araguaia (PA) – Pau d’Arco (TO)
Assustados pelo tamanho da cachoeira que não descemos ontem, tentáramos entender o que nos esperava pela frente. Como e quantos seriam os travessões até Pau d’Arco? Levados a entender que seriam parecidos com a cachoeira de Conceição, aceitamos a sugestão de levar um piloteiro conosco. Valeu a pena pela tranqüilidade da viagem. No barco, estávamos Gérard (o avião ficará em Conceição), Sr Rubens que conhece bem esse trecho do rio e eu. Vínhamos a plena velocidade, atravessando lugares onde, se estivéssemos sem sr. Rubens, estaríamos seguindo devagarzinho em busca de bancos de areia. Os trechos do rio que se aproximam aos travessões ainda estão balizados mas para susto meu, mais de uma vez vi, bem no meio do canal sinalizado, a ponta de uma pedra sobressalente! Que loucura!
Chegamos rapidamente em Pau d’Arco, o carro com Natanael, Makoto e Rejane chegou logo depois, e em pouco tempo estávamos almoçando no Hotel Tocantins com a Dona Bemvinda. Como era dia de jogo (Brasil x Japão), não pretendíamos fazer um evento, mas o prefeito nos catou no hotel e pediu. Tínhamos que encaixar uma rápida palestra entre o jogo e um campeonato de dança de quadrilha que estava acontecendo à noite!
Complicado foi montar o telão, porque o melhor lugar que havia para apoiá-lo era na ‘parede’ de alto falantes de onde, como é de praxe hoje em dia, saia um som com decibéis mil vezes acima do recomendado para a sanidade humana. Entre uma vitória do Brasil na Copa e a festa da noite, apenas não houve tempo para o debate habitual.
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23/06/2006 – Pau d’Arco (TO) – São Geraldo do Araguaia (PA)
As informações sobre a quilometragem entre as cidades ribeirinhas variam muito e, em geral, são exageradas. Em todo o trecho do rio que navegamos com o barco, registramos o caminho no ‘tracking’ do GPS e, assim, sabemos exatamente quantos quilômetros percorremos. A viagem até São Geraldo seria bem longa – desta vez, Makoto viria com Gérard e eu no barco, Natanael e Rejane iria pela estrada e atravessaria o rio na balsa em Xambioá (TO).
O Araguaia é cada vez mais imenso, parece um rio amazônico. De manhã cedo, a água está tão calma que parece uma piscina ofuscante. Na lancha, deslizando pela imensidão do rio que parece um lago, a gente se sente tão pequena. Pequena mas eufórica com tamanha beleza. O azul intenso do céu desce rumo ao horizonte se tornando cada vez mais branco até se derreter para formar o rio onde estamos. A linha do horizonte é apenas aparente onde há árvores. Senão, temos a impressão de estarmos voando pelo céu num barco – sensação engraçada para nós que frequentemente transitamos entre esses dois mundos – céu e água – com o avião anfíbio.
Nesse trecho do rio, as águas estão mais altas do que rio acima e as praias apenas começando a surgir. Obviamente, há uma certa demora no escoamento do vasto volume de águas. Mesmo assim, temos que ter mais cuidado com as pedras que começam a mostrar os dentes e são bem mais ameaçadoras que as doces areias. Passamos por 3 travessões, para dar o gosto do que nos espera pela frente: as cachoeiras de Santa Isabel. Mas isso será depois do São Geraldo…
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24/6 São Geraldo do Araguaia (PA) – Araguatins (TO)
Vai ou não vai? Vai ou não vai? Eis a grande questão. Descer o rio passando pelas cachoeiras de Santa Isabel, ou tirar o barco da água e irmos todos a Araguatins no Land Rover? Dependendo com quem falamos, o trecho é impossível, altamente arriscado ou uma moleza. Depois de ver a cara da cachoeira logo acima de Conceição do Araguaia, eu estou fora. Gérard, claro, quer ir pela água….
Ontem à tarde, após conversas com alguns barqueiros, inclusive Cícero que seria o piloteiro, foi tomada a decisão de não descer o rio. Mas depois do jantar na pizzaria do Sassá, que dá de cara para o posto da BR, o Cícero veio procurando Gérard, dizendo que mudou de idéia. A apreensão inicial dele foi em função do barco ser de volante, e não motor de popa com que ele, e os outros barqueiros, estão acostumados a navegar. O volante, ele explicou, reage lentamente quando, em plena cascata das cachoeiras, o que mais conta é agilidade e reações rápidas. Mas confirmou que saberia dar conta do recado e Makoto optou para enfrentar o desafio junto com Gérard.
Colocamos o barco na água, nos despedimos dos três e seguimos (Nathanael, eu e a pobre Rejane sofrendo de uma infecção decorrente de um caldo de frango que tomou em Pau d’Arco) de volta ao Tocantins pela balsa para, supostamente, encontrar com o barco no embarque da balsa em frente a Santa Isabel. Só que atrasamos. Primeiro esperando a balsa, segundo porque em certo trecho havia uns mil bois sendo tocados pela estrada, terceiro porque a estrada de asfalto faz um grande desvio passando por Ananás, onde as ruas estavam fechadas por uma cavalgada… e depois teríamos que fazer mais 40 km por uma péssima estrada de terra.
Os rapazes, claro, completaram o curso em tempo recorde, ajudado pela força da correnteza e a sabedoria do Cícero. Passaram por alguns sufocos num momento de distração em que Makoto quase foi jogado fora da lancha, mas no final se divertiram e, obviamente, alegaram que a corrida não fora assim tão complicada.
Continuamos diretamente para Araguatins onde representantes das secretarias da Prefeitura nos esperavam. A cidade está numa árdua e confusa luta desde que, há 2 anos, apareceu um fenômeno misterioso que provocou cegueira em várias crianças e pescadores. A culpa fora inicialmente jogada nos caramujos que vivem no rio, mas após estudos realizados por diferentes órgãos, esses bichinhos foram inocentados. A causa da cegueira ainda paira no ar, e na verdade, nem foi comprovado ainda que o problema tem origem nas águas do rio. Enquanto dure a dúvida, essa cidade, como também outras bem distantes onde não houve casos de cegueira, sofre com a queda abrupta no número de turistas.
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25/06/2006 – Araguatins (TO) – Foz do Araguaia – Marabá (PA)
Rejane continua passando mal, sem condições de passar mais um dia ou na lancha, ou no carro. Saindo de Araguatins às 05.15, Nathanael e Makoto a levaram a Imperatriz para pegar um vôo de volta a Brasília. Quando voltaram, colocamos o barco no rio para a última etapa da viagem, até a foz do Araguaia na sua confluência com o rio Tocantins. Nathanael e Makoto atravessariam o rio na balsa e seguiriam para São João do Araguaia, pequena cidade paraense que fica rio abaixo da confluência. Lá, eles colocariam a canoa no água e viriam nos encontrar na foz. Assim foi o plano.
Gérard e eu seguimos mais uma vez pelo rio imenso mas com cada quilômetro, ficamos mais tristes de estarmos chegando ao final. Desde que passamos a navegar entre Pará e Tocantins, a ocupação das margens é cada vez maior. As paredes de floresta que desciam até a água agora cedem lugar para margens vazias, ou campos onde predominam os pés de babaçu. Sempre há pequenas casas na beira do rio – às vezes de alvenaria, às vezes simples palhoças – mostrando que o homem já é dono desse pedaço há muito tempo.
Foram 14 h quando, com coração apertado, chegamos à ponta afilada onde as águas do Tocantins, menos caudalosas e em menor quantidade, se encontram com o vasto escoamento do Araguaia. No encontro das águas, desligamos o motor e em seguida, fomos saudados por uma dezena de botos. Em poucos minutos, Nathanael e Makoto já vinham chegando e juntos passamos um bom tempo curtindo esse lugar incrível. Os botos brincavam conosco, saltando fora d’água ou subindo para respirar mas foi impossível tirar uma foto – a câmara estava sempre apontada na direção errada!
Até agora, não consegui ouvir uma justificativa para o rio, a partir deste ponto, levar o nome Tocantins quando o Araguaia é claramente o rio mais poderoso – sem falar do ‘detalhe’ de possuir a maior extensão.
Já estava na hora de continuar nossa viagem até Marabá para tirar a lancha da água. Nathanael e Makoto voltaram a São João onde o acesso estava bastante complicado pela grande quantidade de pedras. Mas, para surpresa nossa, o caminho até Marabá também estava bem pedregoso e tivemos que buscar bons caminhos pelos travessões. Já era quase na hora do pôr-do-sol quando alcançamos a cidade. Por ser domingo, a Praia do Tucunaré, que fica em frente à cidade, estava ainda bem lotada. Percebemos em seguida a enorme quantidade de lixo na beira do rio e em volta das pessoas sentadas nas mesas dos barraqueiros. Ficamos deprimidos com tanta desleixo. Como é que essas pessoas passam o dia sentados no meio de seu próprio lixo? E se já é assim em junho, como deve ser no calor da alta temporada em julho? De repente, fiquei feliz que o rio nesse ponto não se chama mais “Araguaia”.
Deixamos o rio Araguaia, ainda esplêndido, menos injuriado, a 40 quilômetros de distância, rio acima.
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26/06/2006 – Marabá (PA)
Antes de começar o longo caminho de volta a Brasília, resolvemos colocar o barco na água mais uma vez e dar uma volta pela praia que tanto nos decepcionou ontem. Felizmente, o trabalho de coleta de lixo já havia começado mas na praia em frente a alguns barracos, o lixo ainda estava espalhado em torno das mesas e cadeiras. Os barraqueiros disseram que a prefeitura apenas faz coleta de lixo em julho, época da temporada. Em outros meses, eles mesmos fazem a limpeza do local.
Continuamos nosso passeio pelo rio em frente à cidade até o bairro Francisco Coelho, a ponta da cidade que fica na confluência do rio Itacaúnas com o Tocantins. É um bairro extremamente pobre – uma favela, na verdade – onde, durante a cheia, as casas muitas vezes ficam alagadas. Agora, com o rio mais baixo, ficam a uns 4-5 metros acima do barranco. E adivinham o que cobria esses barrancos? Lixo. Na hora em que passavam, vi um saco de lixo voar pela janela de um casebre e cair no rio.
Paramos para conversar com uma senhora que estava lavando roupa na beira do rio. Por acaso, sra. Edna é presidente da associação dos moradores. Perguntamos sobre o lixo, supondo que não havia coleta no bairro. Para surpresa nossa, ela esclareceu que sim, havia coleta todos os dias. Porque, então, jogam o lixo no rio, prejudicando a própria saúde? “Ah, é a cultura do povo,” ela diz tristemente. “Não é por falta de conscientização. Eles gostam de jogar no rio…”
Pelo jeito, não tem salvação mesmo. Mais cedo, no cais da cidade, vi um adolescente chegar à beira da água de bicicleta e arremessar um saco plástico de lixo para dentro do rio. Pergunto: o que inspira uma pessoa a sair de sua casa de bicicleta com o propósito de jogar lixo num rio quando ela poderia simplesmente colocar o saco em frente à sua casa para ser coletado pela limpeza urbana?
Essa cena, então, foi bem emblemática da situação. É a “cultura”, ou a falta dela, dos marabenses. Ficamos extremamente decepcionados com o que vimos nessa cidade. Nosso trabalho no belíssimo Araguaia já chegara ao fim. Estava na hora de voltar para casa.