Campanha 3 – Pantanal
Diário de bordo dos voos de coleta de amostras de água no Pantanal e em afluentes da bacia do Rio Paraguai em dezembro de 2003.
14/12/2003 – Rio de Janeiro-Presidente Epitácio
Para felicidade nossa, a frente fria anunciada para o domingo desistiu do Rio, deixando o dia ensolarado. Apesar das boas intenções de decolar muito cedo do Clube CEU, a festa na noite anterior foi a causa de um atraso, inclusive do sumiço da chave do Talhamarzinho. Alexandre, o comandante do Land Rover, desistiu de esperar e já tocou o carro para frente, marcando encontro para as 21 horas em Presidente Epitácio, nas margens do Rio Paraná.
Era meu primeiro vôo no Max Anfíbio. Sim, parece um filhote do Lake Renegade… o espaço está bastante apertado e viajamos com somente o indispensável para aquele vôo. Decolamos sem esforço e acompanhamos a praia até Recreio – que delicia, a areia tão branca, um mar azulão. Passamos a serra e seguimos pelo Vale do Paraíba, evitando neblina, montanhas, morros e pistas controladas para poder voar em paz. Pouso para abastecer motor e barrigas em Campinas e já no calor sufocante, decolamos novamente para Presidente Prudente. Para minimizar o efeito do vento contra e a turbulência provocada pelo calor, voamos bem baixinho e descobri um fato interessante. Ao passar por campos onde havia gado, as vacas vinham correndo em nossa direção, em vez de fugir. Acho que pensavam que éramos um trator trazendo comida! Quando pousamos em Campinas e ligamos para Augusto (porque o coitado do Miguel estava no hospital), ele parecia surpreso.
Quando ligamos novamente mais tarde, de Presidente Prudente, ela parecia realmente atônito. “Já?” Realmente, acho que nenhum Max se aventurou tão longe de casa ainda! E, as 16:30h, enfim, alcançamos nosso destino, Presidente Epitácio. O Talhamarzinho correu para o hangar, a nós corremos para a casa de Djalma e Cris Weffort onde a carne já estava na churrasqueira…! Pois é, 950 km é meio longe para ir para um almoço…E, depois de um churrasco, nada melhor do que uma sesta… Quando o valente Alexandre chegou no hotel as 21:30, do Rio, já estávamos roncando.
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15/12/2003 – Presidente Epitácio-Dourados
Uma trovoada durante o café da manhã, às 6 horas, não parecia um bom sinal, mas felizmente, a chuva estava caindo em outro lugar. O caminho para Mato Grosso do Sul estava limpo. Nos despedimos do Alexandre, marcando encontro em Dourados para as 4 horas. Pretendíamos fazer coletas em quatro rios pela manhã, pousar em Dourados para abastecer e continuar as coletas à tarde no sul do estado. Um voo lindo sobre campos e matas verdes: uma paisagem que, às vezes, lembra o Pantanal. Aqui, a soja e a cana predominam sobre a pecuária e os rios, em sua maioria, são muito lamacentos, resultado da erosão e da eliminação da mata ciliar. Mas, do ar, descobrimos um córrego lindíssimo, o Ribeirão Papagaio, uma estreita faixa azul ziguezagueando intacta no meio de uma floresta inundada. Chegamos bem a Dourados, ao meio-dia e aproveitamos para almoçar. Quando decolamos às 13h30, já estava ventando muito – pelo menos uns 15 nós, de través – no aeroporto municipal. Seguimos na direção sul para coletar água no Rio Dourados e outros. Tentamos achar um trecho no Rio Amambaí onde o vento estaria alinhando com a “pista” do rio, mas não tivemos sucesso. Após umas tentativas frustradas, resolvemos voltar a Dourados, pousando, dessa vez, na pista gramada da Aplic Aviação Agrícola, que estava mais alinhada com o vento do que a pista do aeroporto municipal. Alexandre, enfim, nos achou no lugar certo. Dourados é uma cidade bem movimentada à noite: todos migram para um certo calçadão no centro para beber chopinho e ouvir música, enchendo as mesas dos restaurantes, como o Kikão, ao ar livre. A vontade era de ficar até altas horas, mas o sono não deixou!
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16/12/2003 – Dourados-Passa Tempo
Dourados/Passa Tempo
Alexandre amanheceu trocando as rodas pelas asas. Ele e Gérard foram voar às 6 horas para terminar as coletas do dia anterior suspensas por causa do vento. Normalmente, as manhãs são calmas, mas algo atípico estava no ar. Eles aproaram ao sul com um vento de cauda forte (20 nós -35 km/h), chegando rapidamente à fronteira com o Paraguai. Conseguiram fazer as várias coletas nos rios Dourados, Amambaí e Iguatemi, mas a alegre velocidade obtida na proa sul teve o contrapeso de uma volta lenta com o mesmo vento de proa. Ao chegar de volta em Dourados, Alexandre ficou feliz em reencontrar o solo e subir novamente no Talha-mato. O horizonte ao sul, já estava manchado pela escuridão da frente fria chegando. Que bom que íamos para o norte, onde o céu estava azul. Decolei com Gérard, rumo a Campo Grande. No percurso, o vento ficou cada vez mais forte, brincando com o avião como se este fosse uma folha seca e impossibilitando o voo em linha reta. Avançamos como um caranguejo, porém, a passo de lesma. O vento seria de através do aeroporto de Campo Grande e ficamos cada vez mais preocupados com a idéia de pousar nessas condições – o Talha-marzinho pesa apenas 300 kg. Quando, após uma coleta no rio Brilhante, avistamos uma boa pista de terra alinhada com o vento ao lado de uma usina de álcool, resolvemos pousar. Afinal, agora tínhamos o carro de apoio em terra para nos resgatar! Quarenta minutos depois, Alexandre chegou à Fazenda Passa Tempo e seguimos todos para a capital no Talha-mato. Um baita temporal caiu na cidade e todos entenderam a opção de chegar com quatro rodas!
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Como Gérard teve de ir a Belo Horizonte apresentar uma palestra na Vallourec & Mannesmann – algo combinado há meses (não programamos esse pequeno atraso decorrente do incidente com o Lake), aproveitamos o dia para consertar alguns probleminhas no Talha-mato. Ontem, na estrada de Rio Brilhante, o odômetro registrou 100 mil quilômetros (esse carro já rodou pelo Jalapão e o altiplano boliviano, pelo deserto de Atacama e a Terra do Fogo) e festejou com um vazamento de óleo de embreagem que ficava pingando no pé do Alexandre (isso quando eu não estava pegando no pé dele). Além disso, a uma velocidade de 90 km/h, há uma tremenda tremedeira no volante que pára ao atingir os 100 km/h. Problema que tentamos resolver em oficinas do Rio e de São Paulo há 100 mil quilômetros. E não é que ficou resolvido em Campo Grande? Gerson Dias, que tem experiência de uso rural de Land Rover, soube logo que eram os calços do munhão dianteiro e matou a charada. Trocou, também, os cilindros de embreagem, deixando-nos prontos para mais 100 mil quilômetros. Quando Gérard chegou de BH e soube da boa notícia, bateu a mão na mesa. “Eu sabia que era isso. Há tempos que tento convencer os mecânicos disso e todos negaram que fosse essa a raiz do problema…” Enfim!
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18/12/2003 – Campo Grande-Rio Brilhante
Encontro com crianças de uma escola do projeto Amigos da Escola no Parque do Prosa, um lindo pedaço de mata preservada em plena cidade onde dois córregos (o Desbarrancado e o Joaquim Português) se juntam para formar o Córrego do Prosa. Ao terminar o evento, pegamos a estrada para Rio Brilhante, para reencontrar o Talhamarzinho que passou esse tempo todo apropriadamente na fazenda Passa Tempo. Porém, nem rodamos 10 km fora de Campo Grande e pumba! Problema com a embreagem de novo! Final da história, entre várias paradas para dar um reajuste na folga do cilindro mestre, chegamos no final da tarde na Usina.
Encontramos o avião bem cuidado pela turma do Adailton. Obrigada pela hospitalidade da pista! Eram 18h, uma tarde ensolarada, quando conseguimos decolar para Aquidauana, com jantar marcado… Estimamos 1 hora de voo com por-do-sol às 19:10h… muito justo. A pista de Passa Tempo é cercado de eucaliptos altos que não permitem uma boa visão das redondezas.
Ao decolar, percebemos relâmpagos e um temporal pairando exatamente na proa do nosso destino. Essa não! Já estávamos no limite para pousar com a luz do dia. Gérard ligou para o Xande, que já estava na estrada para Aquidauana. “Volta, usina!”, ele berrou ao telefone, acima do barulho do motor. Pousamos novamente na Usina, embrulhamos o avião para mais uma noite ao relento, e nisso, nosso querido apoio de terra estava chegando de volta. Mais 45 km, e atracamos numa pousada de Rio Brilhante.
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19/12/2003 – Rio Brilhante-Aquidauana
De volta ao aeroporto às 7h. Céu lindo, sem vento. Perfeito para voar de ultraleve. Nos despedimos novamente do Xande. Cruzamos a Serra de Maracaju e aterrissamos no Aeroclube de Aquidauana onde Tinho esperava. Embarquei com ele no Cessna 180 e fomos filmar e tirar fotos de Gérard fazendo rasantes no Talhamarzinho na Baía dos Jacarés. De volta à cidade, encontramos com o Xande que, apesar de ter problemas novos com a embreagem, conseguiu chegar em Aquidauana a tempo para o almoço na fazenda Baia dos Jacarés: o excelente moqueca de pintado que perdemos na véspera e também pintado ao forno. Nosso anfitrão, Rudel Trindade, tem um projeto pioneiro de cultivo de pintados em tanques-redes, fazendo um trabalho minuciosamente controlado para não prejudicar a água (e os próprios peixes) com super-lotacão.
Pesquisadores da Embrapa monitoram a qualidade dessa água e espera-se que, eventualmente, seria possível aprovar esse sistema de cultivo de peixes nativos sem prejudicar o meio-ambiente. Em todo o Pantanal hoje em dia há escassez de peixes devido à pesca predatória e assoreamento dos rios. Após conhecer o projeto, corremos de volta para a cidade a tempo de comprar uma chave de ½ polegada e passa-lo no esmeril para que pudesse fazer o ajuste necessario da embriagem do Talha-mato. Esperamos que agora seja definitivo…
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20/12/2003 – Aquidauana-Retirinho
Um vôo ma-ra-vilhoso. Na luz matinal, sobrevoamos uma região ao norte de Aquidauana conhecida como Brejão. Uma extensa área de pântanos e pequenos lagos, savanas inundadas e pequenas ilhas cobertas de árvores, onde vivem centenas de aves. Demos voltas e mais voltas, filmando, tirando fotos e apenas olhando, maravilhados. O verde da vegetação, o azul do céu refletido nas águas transparentes, os bichos na maior tranqüilidade… era como sobrevoar o Jardim do Éden antes da chegada do homem. Mais tarde, pousamos novamente na Baía dos Jacarés, dessa vez com parada total. Nego nos esperava num barquinho de alumínio. Desembarquei do Talha-marzinho e embarquei na lancha – nada fácil no meio do lago! – e Gérard decolou novamente. Eu queria filmar o Talha-marzinho fazendo vôos rasantes e navegando na água. Show! Lá pelas 11 horas, o vento já estava bem forte de novo e voltamos para Aquidauana. Xande tinha partido para fazer um vôo com Tinho e voltou encantado com a visita à Fazenda Retirinho. Como o vento ia continuar forte o dia todo, impossibilitando outros vôos, fomos também até a fazenda, agora no Talha-mato , e com a orientação do João conhecemos o Brejão por terra.
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21/12/2003 – Retirinho-Aquidauana
Pensei que o silêncio da noite na fazenda seria interrompido pelos barulhentos curicacas que pernoitam nos coqueiros ao lado da casa. Mas, não; na escuridão eles ficam calados. Que bom acordar devagar, com o ritmo de vida da fazenda. Obrigada por essa oportunidade, Tinho! Na estrada de volta, passamos por uma boiada de 825 vacas – cenas de antigamente que se repetem ainda no Pantanal de hoje. Fantástico. Após um rápido almoço (“barriga cheia, pé na areia” ) na Fazenda Jatobá, de Carlos Magno, voltamos a Aquidauana, e Xande levou Gérard a Campo Grande. Ele teve de viajar de última hora para Brasília, deixando Alexandre e eu a seguir no Talha-mato para Corumbá, onde ele nos encontraria de novo na terça-feira.
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22/12/2003 – Aquidauana-Corumbá
Aquidauana/Corumbá A distância não é muito grande – 300 km –, mas a viagem é demorada. Em alguns trechos da estrada, o asfalto esburacado obriga os motoristas a tirarem o pé do acelerador. Pelo menos, com as condições ruins, aumentam as chances de os bichos atravessarem a estrada sem perder a vida. Ao longo da estrada, os corpos de tamanduás-bandeira, tamanduás-mirins, tatus, coatis e raposas demonstram que, mesmo assim, muitos não se salvam. Chegamos a Corumbá às 11 horas e corremos contra o relógio para resolver algumas pendências antes das 11h30 porque a cidade fecha o comércio para um longo almoço. À tarde, visitamos a Urucum Mineração, a pedido da Cia. Vale do Rio Doce, para coletar água em dois córregos perto da mina de ferro e de manganês. Hénio nos levou até o topo do Morro Urucum, mostrando o trabalho de replantio da vegetação nativa nas áreas já minadas. Além da brisa refrescante no topo do morro, tem-se uma vista maravilhosa das planícies e dos pântanos brasileiros e bolivianos, ao sul de Corumbá, e do Morro Santa Cruz.
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23/12/2003 – Corumbá
Dia sem vento. Perfeito. Gérard decolou cedo de Aquidauana e veio para Corumbá fazendo coletas de água em vários rios como o Aquidauana, o Miranda e o Negro. O teto começou a baixar, e Xande e eu, esperando em Corumbá, ficamos preocupados com seu pouso, pois as serras logo ao lado da cidade já haviam sumido dentro da camada baixa. Ele conseguiu pousar às 10h45, antes da chegada de uma chuva fina. Hora de almoço. Aliás, toda hora parece ser de almoço em Corumbá! Algumas lojas fecham às 11h30 e a cidade dorme até 14h30. Com razão! É um calor de lascar. Quando, às 16 horas, tentamos decolar para aproveitar a tarde ensolarada e sem vento e fazer mais coletas na região, o programa foi bruscamente interrompido porque o atuador do flape parou de funcionar. Gérard passou duas horas no asfalto do aeroporto tentando resolver o problema. Quando um bimotor canadense pousou para abastecer antes de prosseguir para o Rio de Janeiro, convencemos o piloto Duane Colbers a levar a peça para ser consertada na fábrica. Assim, sendo impossível voar até a fazenda onde Armando Lacerda nos esperava para a ceia de Natal, tivemos de achar outro meio para chegar a Porto São Pedro. O salvador foi Sammy…
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24/12/2003 – Corumbá-Porto São Pedro
Na véspera, à procura de informações sobre um casal de amigos, Xande entrara na Cia. Náutica, no porto. Falou com o dono da loja, Sammy, que, ao saber porque Xande procurava o casal Jorge e Raquel, ofereceu-nos uma lancha emprestada para que pudéssemos alcançar Porto São Pedro. Incrível. Ele sabia que na véspera de Natal seria difícil encontrar um piloteiro para subir 190 km rio acima! De manhã preparamos a lancha, comprando gasolina suficiente para ir e voltar, e às 10h30 saímos de Corumbá de alto astral. Após meia hora de lancha no Rio Paraguai, estávamos num imenso lago. “Estranho”, comentei com Gérard e Xande, “ou o rio aqui está muito, muito largo, ou estamos num lago… Mas não tem lago marcado no mapa… Ihhh! Estamos na Bolívia!”
Sim, estávamos! Muito sem graça, baixamos a cabeça e voltamos rapidamente (meia hora!) para o Brasil, dando graças a Deus que, por ser “Navidad”, aparentemente não havia ninguém na base da marinha boliviana. De volta a Corumbá, aprendemos que o rio Paraguai sobe a um ângulo de 90 graus do porto, uma entrada estreita que pensávamos tratar-se de algum afluente. Já no caminho certo, em direção a Serra do Amolar, era só uma questão de esperar o tempo passar… Quatro horas de ziguezague pelo rio barrento, com tempestades armadas em cada lado, mas, felizmente, sem implicar com a gente. Enfim, chegamos a Porto São Pedro, onde Armando e Marli nos esperavam há dois dias e já tinham se conformado com o fato de que não apareceríamos mais. Após um almoço preparado às pressas (estávamos roxos de fome), Armando nos levou para um delicioso passeio pelo Corixo São José e voltamos a tempo de captar o pôr-do-sol no rio. Ceia de Natal espetacular – dourado na churrasqueira, seguido por um sono delicioso no doce balançar da rede…
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25/12 Porto São Pedro
Enquanto o Talha-marzinho fazia um descanso forçado em Corumbá, Armando e o compadre Jorge nos apresentaram alguns casais de talha-mares de verdade, residentes em uma praia em frente à casa. Adoramos esse presente de Natal, mas pelos gritos de indignação, as aves não gostaram das visitas intrusas. Deixando-as em paz, seguimos para conhecer as águas cristalinas do Corixo da Piúva, navegando tranqüilamente pelos pântanos. Embaixo do barco, cardumes de pacus, piraputangas, bagres, eventualmente um dourado e um punhado de tucunarés, todos vivendo dias de paz (é época do defenso da piracema). Acima da água, o verde da mata e das savanas, o domo azul do céu. Tuiuius, biguás, águias, patos, papagaios, anhumas, jacarés e capivaras. Um show da natureza. Armando, mostrando tudo com o entusiasmo de um menino. E, de volta à sede da fazenda, um desfile de comidas pantaneiras produzidas por Jacinta e Dona Cerise, deixando nossas barrigas cheias e conclamando um descanso novamente na rede. Que gostoso esses programas de barco, tão diferentes da correria dos últimos dias…
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26/12/2003 – Porto São Pedro-Corumbá
Levantamos ainda na escuridão, nos despedimos dos nossos generosos anfitriões e com o sol apenas subindo no horizonte, embarcamos na lancha para voltar rio abaixo para Corumbá. Ficáramos sabendo que o atuador do flape consertado somente chegaria a Corumbá na segunda-feira, por causa do fim de semana, mas estaria em Campo Grande no sábado. Para não atrasar mais três dias, Gérard pretendia dar um jeito de prender o flape numa posição fixa e voar até Campo Grande para adiantar o conserto. Meio caminho de volta, numa praia que Armando nos indicara, encontramos um grande número de talha-mares. Um espetáculo. Paramos para filmar a revoada e alguns deles pescando, como o nosso anfíbio. De volta à cidade, uma correria para encontrar um pedaço de alumínio que pudesse servir aos planos de Gérard, mas deu tudo certo. Feliz com o resultado, combinamos que Xande ia para Campo Grande receber a peça, e nós chegaríamos de manhã, após mais uma série de coletas. Depois do jantar, um convite para passar na casa de Sammy e conhecer sua família, todos brincalhões como ele.
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27/12/2003 – Corumbá-Aquidauana
O sol nem tinha mostrado a cara e já estávamos no aeroporto, preparando o avião. Céu limpo, atravessado por pares de papagaios aos gritos. Levantando vôo, aproamos novamente a Serra do Amolar, justamente o mesmo caminho feito na lancha. Só que agora fomos coletar água em quatro lagoas bem grandes que fazem fronteira com a Bolívia. Uma das mais bonitas paisagens que já vi em todo o Brasil. A serra, coberta de mata, cai nessas lagoas. Um lugar sem estradas, só o verde dos pântanos e o azul de infinitos lagos e igarapés. Foi um vôo inesquecível, numa região remota, onde, se tivéssemos algum problema com o avião, passaríamos maus momentos até ser resgatados. Morreríamos com a picada dos mosquitos antes de ser salvos! Mais tarde, no circuito, pudemos constatar os problemas provocados pelo Rio Taquari. Excessivamente assoreado pela erosão provocada por fazendeiros rio acima, o leito não comporta mais a água, que, lamacenta, transborda e inunda permanentemente vastas terras além das margens. Muitos pantaneiros perderam suas fazendas e suas casas. Está na hora de cobrarmos mais responsabilidade, preservando matas ciliares onde ainda existem e replantando onde foram destruídas. Terminamos o dia pousando novamente no simpático aeroclube de Aquidauana, onde reencontramos Xande, chegando de volta de Campo Grande, orgulhosamente abanando a peça tão esperada. Novo atuador do flape instalado antes do pôr-do-sol. Ufa!
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28/12/2003 – Aquidauna-Araçatuba
Às 5h30, ainda na escuridão, Xande levou Gérard ao aeroporto para completar o circuito de coletas até Porto Murtinho. Eu não fui porque, no dia anterior, fizera uma besteira. Tive de transferir uma das amostras de água para uma garrafa de água mineral e, mais tarde no hotel, tomada por uma grande sede, bebi todo o seu conteúdo por engano. Ao chegar ao sedimento no fundo da garrafa, me dei conta do erro. O gosto da água não era ruim, mas deixou uma estranha sensação na garganta. À noite, porém, sofri terríveis dores de barriga, as piores em todos meus anos viajando pelo mundo. A amostra era do Rio Taquari. Já sabemos do estrago que o rio está fazendo no Pantanal devido ao assoreamento – agora pergunto: o que mais, além de terra e areia, tem nessas águas? Gérard não teve um dia fácil. Estava correndo contra a chegada, no sul do estado, de uma frente fria bem brava. Após abastecer em Porto Murtinho, na fronteira com o Paraguai, ao entrar na pista para decolar, furou um pneu do trem principal. E ao sudoeste, o céu já estava preto, a frente avançando a 35 km/h. Com a prestativa ajuda de Ouvídio, acordaram o borracheiro perto do aeroporto (que obviamente não tinha as chaves apropriadas para trabalhar com uma roda tão pequena) e, respaldados pela solidariedade de muita gente, conseguiram consertar o pneu. Esse tempo todo, o avião ficou imobilizado na cabeceira da pista – felizmente não havia nenhuma outra aeronave no horizonte àquela hora de domingo! Gérard recolocou a roda e decolou literalmente minutos antes de o temporal engolir o aeroporto. Sofrendo muito com a turbulência, a ponto de passar mal, ele avançou às pressas, fazendo as coletas até Campo Grande, onde tivemos um encontro de alguns minutos às 13 horas. Ele decolou novamente, ansioso para alcançar Araçatuba e ficar fora do alcance da frente fria. Xande e eu seguimos no Talha-mato, chegando bem mais tarde ao Hotel Pekin, em Araçatuba, onde nos reunimos com Gérard. Este, após um dia estressante sem café da manhã nem almoço, já estava feliz, com a barriga cheia de yakisoba e algumas cervejinhas refrescantes.
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29/12/2003 – Araçatuba-Rio de Janeiro
Está virando rotina acordarmos às 5 horas. Bem cedo pela manhã é a melhor hora para voar. Sem vento, sem calor, sem turbulência. Deixamos o pobre Xande encarar 1.000 km de estrada e decolamos de Araçatuba com os primeiros raios de sol. Pousamos em Bauru para nos informar sobre a meteorologia e abastecer, e tivemos de esperar até as 8 horas para o posto abrir. Mais uma parada em Americana, e estávamos agora com combustível suficiente para alcançar o Rio de Janeiro. A Serra da Mantiqueira e a Serra do Mar estavam gloriosas, sem nuvens, verdíssimas. Constatamos que as plantações de eucaliptos aumentam como uma praga, avançando serra acima em todos os lugares e provocando crescente destruição da Mata Atlântica. Os desesperados gritos de SOS dessa mata não parecem alcançar os ouvidos necessários. Acima da Baía de Angra, o mar verde estava riscado de branco pelas esteiras de mil lanchas – são as férias! E, no fim dessa terceira etapa do projeto, que foi bem difícil, ganhamos um ótimo presente: sobrevoando o mar azul em frente ao Recreio dos Bandeirantes, avistamos uma baleia! Uma baleia da paz,que, além de pedir “Salvem as baleias”, dá respaldo ao nosso pedido: “Salvem as nossas águas.” Feliz 2004.