Campanha 5 – Nordeste
Diário de bordo dos voos de coleta de amostras de água pela bacia do Rio São Francisco e no Nordeste em maio de 2004.
13/05/2004 – Rio de Janeiro – Belo Horizonte – Pirapora
Maio é o mês do aniversário do Gérard. Nenhum presente melhor do que fazer uma viagem panorâmica pelo Rio São Francisco. Chegamos às 7 horas no aeroporto do Jacarepaguá, felizes da vida por estar pegando a estrada de novo. As montanhas em volta da Barra da Tijuca se destacavam contra o azul clarinho do céu com algumas nuvens fininhas, e atrás, pelo oeste, havia uma bruma. Surpresa nossa – e dos outros pilotos que esperavam – descobrir que o aeroporto estava fechado por falta de visibilidade. Somente fomos liberados para decolar às 9h30. Passamos pela orla do Rio, bonita no sol matinal, e aproamos em Belo Horizonte, passando pela Serra dos Órgãos. Outra surpresa. Longe do mar, atrás da serra, a terra ficou tapada por uma grossa e interminável camada, um tapete branco sem furos. Por uma hora, voamos acima desse edredom até avistar a terra novamente um pouco antes de Belo Horizonte. Abastecemos em Pampulha e tornamos a decolar, seguindo o barrento Rio das Velhas até sua confluência com o Velho Chico pertinho de Pirapora, nosso destino. Já estivemos em Pirapora em outras ocasiões, por terra. Chegando pelo ar, ficamos chocados com a descarada poluição atmosférica perpetrada pelas indústrias locais – fábricas de ferro-gusa e uma de cerâmica que queimam a madeira do cerrado e despejam uma densa fumaça sobre o local. Os cidadãos não reclamam por medo de perder as fábricas e os empregos que estas fornecem à população local. Situação conveniente para as indústrias, mas uma total falta de respeito para todos os seres vivos nas proximidades! Jantar maravilhoso no Restaurante Egnaldo, e camas acolhedoras na casa de Penha e Marcos.
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14/05/2004 – Pirapora – Montes Claros – Bom Jesus da Lapa
Marcos nos levou bem cedo ao aeroporto. Hoje vamos começar a seguir o Velho Chico. O rio plácido, sem pressa, se estica o dia todo como uma enorme serpente, indo ao encontro do horizonte distante. Visibilidade nítida, as únicas queimadas são dos fornos implacáveis dos carvoeiros pondo abaixo o cerrado. Saímos do caminho do rio para abastecer em Montes Claros, antes de seguir rumo ao norte. Cada cidade era uma tentação, convidando a uma parada – primeiro, a charmosa São Francisco, seguida por tantas outras, algumas pequenas aldeias de casas coloridas. E o prêmio, à luz da tarde, foi a pedrona de Bom Jesus da Lapa, se destacando na planície. A cidade deserta, comparada com nossa primeira visita há muitos anos, quando as ruas e as grutas estavam lotadas de peregrinos: o barulho, os cheiros, as alegrias. Evitando um Mek Douglas e um Selft (sic) Service, fomos atrás de surubim e cerveja no Koisa Nossa (altamente recomendado!).
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15/05/2004 – Bom Jesus da Lapa – Petrolina
Mais um glorioso voo em companhia do Velho Chico. Não ficamos sós nem por um minuto… cada vez que olhávamos para baixo, havia alguma canoa transitando pelas águas barrentas ou simplesmente parada num ponto estratégico para pegar peixe. Ou pequenas barracas longe das cidades, com uma minúscula roça ao lado. No calor daquela imensidão, as águas desse generoso rio tornam a vida possível, mesmo que bastante dura. Houve tanta chuva esse ano que o rio está num nível atípico, algo que ficou claro quando chegamos ao montante da represa de Sobradinho e vimos os tetos de casas abandonadas que pareciam estar “flutuando” nas extensas águas que tudo inundaram. E que dizer então da vastidão dessa represa, de onde surgem os picos das montanhas submersas como pequenas ilhas? Lágrimas para tudo que ficou enterrado, alegrias para tudo que a água tornou possível. Pouso no calor de Petrolina, aeroporto freqüentado mais por passageiros-frutas – uvas, mangas, bananas etc. – do que por passageiros de duas pernas.
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16/05/2004 – Petrolina – Represa de Sobradinho – Petrolina
Presente para Gérard no dia do seu aniversário: um voo até umas ilhas dentro da represa de Sobradinho. Tudo indica que são o que sobrou de algumas antigas dunas; agora são ilhotas de areia, tomadas por uma vegetação rasteira. Nos canais entre as ilhas, conseguimos achar um trecho de água protegida para pousar o Talha-mar. No outro lado do lago, surgiam umas chapadas dando um toque de faroeste, não fosse tanta água em volta! Lugar sensacional que curtimos um tempinho antes de ter de fugir do sol escaldante por falta de uma sombrinha. Na volta a Petrolina, um presente: uma garrafa de vinho tinto, Garziera, trazida por Elizangela, repórter da TV Grande Rio. Vinho feito de uvas da região, ou seja, a água do Rio São Francisco transformada em vinho.
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17/05/2004 – Petrolina (PE) – Pedro Alfonso – Maceió (AL)
Mais um dia seguindo o Velho Chico, ora passeando pelos campos irrigados por gotejamento, ora o sertão gloriosamente verde. Após a represa de Itaparica (que parece estar começando ter problemas com afloração de algas em algumas pequenas baías), seguimos sempre sobre o sertão verde até Canudos. Ou melhor, “Canudos Novos” visto que a original está debaixo d’água. Nada lembrava a idéia que a gente faz desse lugar. Água por todos os lados, inclusive caindo do céu! Tínhamos planejado aterrissar ou amerrissar aqui, mas a chuva não permitiu. Voltamos ao São Francisco, pousando para almoçar e abastecer em Paulo Alfonso, onde fomos gentilmente recebidos pelo pessoal da Infraero e por Gláucio. Os planos para a tarde, continuar até Penedo e a foz do rio, também foram abortados pela chuva, nos obrigando a seguir diretamente para Maceió.
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18/05/2004 – Maceió – João Pessoa
Ao abrir as cortinas do hotel para apreciar o nascer do sol, o que vimos? Nuvens baixas e chuvas esparsas. Nossa rota hoje seguia pelo interior de Alagoas e Pernambuco até o gigantesco açude de Boqueirão, um lago de água cor de areia no interior da Paraíba. Mais uma vez, abaixo das asas, só víamos campos verdes. Como o povo tão sofrido dessas bandas deve estar feliz! Nem sombra das paisagens áridas – árvores sem folhas, cactos e pedras – que normalmente são associadas a essa região. Por todo lado, as roças estavam bem avançadas. É o Fome Zero dando certo! João Pessoa estava resplandecente ao sol da tarde quando pousamos no Aeroclube para rever tantos velhos amigos.
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19/05/2004 – João Pessoa (PB) – Natal (RN)
Após a correria de ontem para terminar a manutenção do motor, decolamos na manhã ensolarada para Natal. Seguindo a recomendação dos amigos do Aeroclube da Paraíba, sobrevoamos a Lagoa do Bonfim, perto de Natal. É uma lagoa doce de águas azuis e transparentes. Ah, pensamos, esse é um lugar bonito para pousar o avião… Mas estávamos com hora marcada para chegar a Natal e continuamos. Primeiro, um sobrevoo do delta do Potengi e uma passada pelo lugar onde, em outras épocas, os hidroaviões Catalina amerissavam. E uma passagem sobre a imperdível Fortaleza dos Reis Magos, em forma de estrela.
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20/05/2004 – Natal – Lagoa do Bomfin – Mossoró (RN) – João Pessoa (PB)
Ao sobrevoar a Lagoa do Bonfim ontem, ficamos com água na boca para pousar naquela água linda. Agora surgiu a oportunidade e fomos de manhã cedo encontrar com uma equipe da TV Globo. Um lugar fora de série… veja na foto! Depois, seguimos para Mossoró, atravessando sempre o sertão, mas um sertão verde, com todos os açudes cheios e alguns até sangrando, algo que ocorreu somente há 17 anos. É difícil imaginar que essa paisagem possa virar um semideserto. Ficamos encantados com o contraste entre as planícies e as montanhas de rochedos amarelos. Reabastecemos em Mossoró, graças à solidariedade do Sérgio e dos amigos do aeroclube de ultraleves, e continuamos nossa voltinha pela região, com planos de dormir em Campina Grande (PB). Mas, no final da tarde, nuvens baixas e chuvas fecharam o aeroporto e tivemos de correr para chegar a João Pessoa antes do pôr-do-sol.
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Um passeio ma-ra-vi-lho-so até Recife, voando baixo, paralelamente às falésias da costa paraibana – falésias que na luz do sol baixo reluziam com várias cores – vermelho, amarelo, laranja, marrom. Um espetáculo! A cidade de Recife também estava linda, mas não podemos dizer o mesmo do Rio Capibaribe, que, desde alto, se mostrava poluído e cheio de lixo. Do aeroporto, seguimos com Stela Oliveira, coordenadora do programa Amigos da Escola, diretamente para a Escola Municipal Novo Mangue, no bairro de Joana Bezerra (na verdade uma favela nas margens do rio), no centro urbano de Recife. As crianças estavam exaltadas e conversamos muito sobre a água – um luxo que elas nem sempre têm em casa. Todas comentaram que já pegaram alguma doença relacionada à água. É uma realidade que, se não cuidarmos desse recurso, vai afetar cada vez mais gente, tanto no Brasil como em todo o planeta.
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22/05/2004 – Recife (PE) – Aracajú (SE)
Normalmente, decolamos bem cedo para aproveitar os melhores momentos do dia, mas temos percebido que, no Nordeste – pelo menos nessa época do ano – há chuva pela manhã e vale esperar até umas 10 horas. Descemos pelo litoral ensolarado, com a maré vazante e os recifes e bancos de areia formando desenhos coloridos abaixo das nossas asas. Especialmente bela é a Praia dos Carneiros, perto de Tamandaré (PE). Ai, que vontade de parar o avião logo ali, naquela praia! Mais ao sul, antes da foz do Rio São Francisco, passamos por lindíssimas lagoas de águas doces ao sul de Maceió. Novamente, como na semana passada, tentamos chegar a Penedo e, mais uma vez, a cidade se escondia debaixo de chuva. Como o aeroporto continua fechado, seguimos para Aracaju.
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23/05/2004 – Aracajú (SE) – Penedo (AL) – Salvador (BA)
Mais uma vez, chuva leve pela manhã cedo, mas, teimosos, insistimos em voltar ao Rio São Francisco e tentar pousar em Penedo. Desta vez, deu certo! Estava chuviscando na costa, mas, no interior, um solzinho iluminava o Velho Chico e as pequenas velas dos pescadores. Sobrevoamos a cidade várias vezes, esperando a balsa sair do porto, e então, pousamos e encostamos, para surpresa geral da população. As crianças adoraram e um velho senhor veio dizer a Gérard que a gente o fez lembrar dos magníficos Catalinas que pousavam aqui em outras épocas. Parece que o Talha-mar é o primeiro hidroavião a pousar aqui desde então. Quando a balsa estava para regressar, nos preparamos para ir embora… o motor, porém, não quis saber. A bateria estava morta! E agora? Momentos de ansiedade, com todos querendo ajudar. Isso não poderia ter acontecido num lugar melhor. Em momentos, um barqueiro trouxe sua bateria 12v, colocamos os cabos e pumba… o motor pegou. Reabastecemos novamente na BR Aviation em Aracaju e, já em céus baianos, aproveitando o bom tempo, fomos fazer uma visita à bacia do Rio Paraguaçu. Seguimos o leito desse grande rio de águas escuras até a represa Pedra do Cavalo e a linda cidade de Cachoeira, antes de pousar em Salvador.
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24/05/2004 – Salvador / Ilhéus (BA)
Ao pousar em Salvador, já sabíamos que não íamos conseguir decolar cedo no dia seguinte, como planejávamos. Pifaram duas bombas – a auxiliar de combustível e a de vácuo. A perda dessas bombas não provocou nenhum susto a bordo, mas era importante consertá-las antes de prosseguir. Sabíamos que na BATA – Bahia Táxi Aéreo – encontraríamos velhos amigos, Sr. Gildo e Ricardo, que nos ajudariam. E assim foi: eles mobilizaram todos na empresa e às 13 horas, já estávamos com as duas bombas consertadas, prontos para decolar. Deixamos Salvador em pleno sol, mas antes de chegar a Ilhéus, já encontramos nuvens baixas e as chuvas de praxe. Muitos rios que desembocam no Atlântico nesse litoral são curtos e, portanto, não carregam muita terra: tem águas escuras por natureza e normalmente formam deltas com mangues. Recepção calorosa no Aeroclube de Ilhéus… obrigado!
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25/05/2004 – Ilhéus – Comandatuba – Canavieiras – Rio de Janeiro
O primeiro voo do dia era muito curto – paramos a 30 milhas ao sul de Ilhéus no chiquérrimo aeroporto de Comandatuba para abastecer. A vontade era ficar por lá mesmo, mas estávamos correndo para alcançar o Rio e ter um dia em casa antes de seguir para a feira Expo Aero Brasil em Araras (SP). Antes disso, mais uma parada em Canavieiras (BA), onde André nos esperava desde domingo. Havia um pequeno comitê à nossa espera, incluindo Dona Carmosina, da Secretaria da Cultura. Ficamos tristes por ter perdido o bobó de camarão que André tinha preparado, e também por não ter tempo de conhecer a cidade. Ao sobrevoá-la, percebemos todo seu charme – as casas coloridas, a igreja azul-marinho, o verde dos mangues e as águas do delta do Rio Pardo. Seguimos o vOo, passando por rios imensos como o Jequitinhonha e o Doce (ambos de águas bem barrentas), correndo contra o relógio para abastecer novamente em Vitória e chegar ao Rio antes do pôr-do-sol. Encontramos um Rio de Janeiro nublado e frio… adeus ao sol baiano!